segunda-feira, 10 de novembro de 2008

CULTURA E EDUCAÇÃO À LUZ DA FILOSOFIA DA ARTE

Apesar de extenso, o ensaio que aqui escrevo expressa as minhas preocupações com a educação em nossos dias. Destina-se a todo aquele que de alguma forma se preocupa com a educação e o futuro de nosso país. Qual é a concepção de educação que temos? O que é educar? Responder a esta pergunta é tomar posição frente à atual crise de nossa época, uma crise espiritual, ética e cultural.


Apresentação do problema

Gostaria de começar com um velho ensinamento da filosofia alemã, atribuído a Heidegger, que expressa toda a sua sabedoria na simplicidade do reconhecimento: “Denken ist Danken” (pensar é agradecer). Pensar é dialogar com os mestres do pensamento, com os criadores da arte, da história, das letras, do conhecimento e da ciência. O reconhecimento se dá, assim, na atribuição do valor da tradição, no diálogo com as criações humanas. A simplicidade deste gesto guarda, em sua forma essencial, um grande saber: ninguém cria a partir do nada, toda criação encerra a sua originalidade em um combate (agón) ou conflito com o passado, vale dizer: em um diálogo com a tradição. Em sentido mais amplo, ninguém pode sequer estar totalmente sozinho na cultura, pois a sua própria consciência é o resultado de um aprendizado. Lembro aqui, em agradecimento, portanto, as palavras do grande romântico alemão Achim von Arnin, que, contra toda blasfêmia da criação puramente individual, contra a loucura de se iniciar a partir da consciência egóica, dizia em seu romance A condessa Dolores: “Maldito seja aquele que começa por si mesmo! Somente a infâmia começa por si mesma um novo mundo. O que é bom o foi eternamente”.
Se o propósito desse ensaio é buscar uma compreensão, ainda que em suas linhas gerais, da relação entre cultura e educação, é preciso antes aprender a ouvir a voz que, mesmo vinda de tempos antigos, faz-se presente em nosso modo de pensar, de agir e compreender nossa própria realidade. Pois, no final das contas, é somente graças à tradição, que nos empresta suas construções, que podemos criticá-la. A tarefa de vislumbrar a proximidade entre cultura e educação nos conduz, certamente, a uma crítica do atual estado em que se contra nossa pedagogia ¾ frente a efetividade do fazer pedagógico. Algumas noções da filosofia da arte podem aqui corroborar para tal crítica e até mesmo possibilitar algumas explicações da atual crise da educação.
Iniciemos, à maneira de Sócrates, com a indagação: que é cultura? Quando e como surgiu, de modo consciente, a noção de cultura? O que essa noção expressava inicialmente? Qual a sua relação com a educação desde os antigos até os modernos; por que essa relação parece ter se desfeito em nossos dias? De quem é a culpa?
Otto Maria Carpeaux gostava de citar seu amigo arquiteto, Adolf Loos, que dizia: “As velhas verdades dizem-nos mais que as novas mentiras”, e em relação às construções arquitetônicas, Loos dizia: “Tudo o que é moderno é feio, tudo o que é velho é belo”. Com isso, queria dizer o arquiteto vienense, explica Carpeaux, que o tempo é o senhor da verdade: destrói as construções mal feitas, falhas e deixa persistir as coisas bem realizadas: “O feio é esquecido pelo tempo; mas a mentira é esquecida por si mesma” (Carpeaux, Ensaios Reunidos, pág. 200). Lembremos ainda Machado de Assis que, quando certa vez alguém lhe disse “Que casas feias!”, respondeu categoricamente: “Feias! Mas são velhas!”.
É nesse sentido que endereço minha primeira crítica à pedagogia: a ela é necessário sentido histórico; ao pedagogo é preciso um profundo diálogo com a história da educação: não a escola ideal deve ser pensada, mas a escola histórica deve ser conhecida. A segunda crítica, que apresentarei logo a seguir, e que se coloca em relação à primeira, é, até onde consigo ver, o principal problema da pedagogia em nossos tempos: o distanciamento abissal entre educação e arte, tomando essa última palavra aqui em sua significação mais ampla, ou seja, em seu sentido paidêutico.

Primeira crítica: o problema do conhecimento histórico.

A) Cultura enquanto Paidéia: o caráter perfectivo.


Quando nós, homens do século XXI, olhamos para nossa história humana, não podemos deixar de nos surpreender com a estreita relação entre educação e cultura, mais ainda: com o significado dessa relação para nossos mestres do passado: a rigor, educação e cultura são uma e mesma coisa.
A idéia de cultura, o termo é metafórico, designa 1º) o cultivo das capacidades humanas e 2º) o resultado do exercício destas capacidades segundo certas normas. Esse segundo significado é, obviamente, anterior a toda idéia de uma filosofia da cultura pensada a partir de uma sociedade. A noção de cultura aparece como resultado da tradução feita pelo filósofo romano Cícero ( 106-43 a.C ), no século I a.C, da palavra grega paidéia (paideia), sinônimo de educação no sentido de algo que ultrapassa, em densidade moral, a mera instrução. Cultura denota, assim, nos círculos humanísticos onde surgiu, um processo educativo e perfectivo, cujo sujeito era, obviamente, um indivíduo. Em seu livro As Idéias e as Formas, José Guilherme Merquior dedica-se a examinar este aspecto da noção de cultura. É, pois, nesse sentido, observa Merquior, que ainda hoje falamos que uma pessoa é culta e, por implicação, que tal ou qual cidade é um centro de cultura.
A implicação ou significação maior do conceito de cultura instala-se, desse modo, no seu caráter perfectivo, remetendo à noção grega de paidéia, de formação, no qual o sujeito pode tornar-se maduro, pode tornar-se melhor. Esse caráter perfectivo do conceito de cultura remete à própria etimologia: cultura conota, como os substantivos, culto e agricultura, uma atitude de zelo e cuidado perante algo que cresce e se forma, amadurecendo lentamente. É nesse sentido que podemos compreender a concepção de pedagogo entre os gregos: ele deve conduzir a criança até seu amadurecimento enquanto homem, regando sua individualidade com as construções culturais, artísticas e filosóficas ou científicas realizadas pelo povo. Nesse primeiro sentido, educação significa a formação do indivíduo do mesmo modo que o agricultor zela por suas sementes para que se formem enquanto plantas.
Outra característica da idéia clássica de cultura é o seu alcance universal, sua vocação cosmopolita. Não foi à toa que Cícero estabeleceu uma equivalência entre cultura e humanitas, a própria condição humana como meta a ser conquistada pelo esforço pessoal ¾ ou seja, a própria condição humana como valor e não como simples dado biológico.
Cultura significa, portanto, em sua mais antiga acepção, a formação do homem, sua melhoria e seu refinamento. Além desse 1º significado, que é a tradução de paidéia, de educação no sentido em que os gregos compreenderam esse termo, encontramos, como já foi indicado e como será desenvolvido a seguir, um segundo significado: cultura é o resultado dessa formação, ou seja, o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados, que também costumam ser chamados de civilização.
Educação enquanto formação do homem, enquanto paidéia: esse é o significado por meio do qual o humanismo pensou o conceito de cultura. Seu significado refere-se, primeiramente, à formação da pessoa individual: é a educação do homem enquanto tal, conforme as criações que são próprias ao homem, chamadas pelos gregos e latinos de boas artes, que eram, a poesia, a música, a eloquência, o teatro, a filosofia, etc. voltarei a discutir essa questão das boas artes mais adiante.

Em seu Dicionário de filosofia, N. Abbagnano chama a atenção para o fato de que a educação, no sentido amplo,

"É definida não do ponto de vista da sociedade, mas do indivíduo: a formação do indivíduo, sua cultura, torna-se o fim da educação. A definição de educação na tradição pedagógica do Ocidente obedece inteiramente a essa exigência. A educação é definida como formação do homem, amadurecimento do indivíduo, consecução da sua forma completa e perfeita: portanto, como passagem gradual ¾ semelhante à de uma planta, mas livre ¾ da potência ao ato dessa forma realizada." (ABBAGNANO, Dicionário de filosofia, verbete “educação)

Assim, em nossa educação atual, é preciso perguntar ainda pelo lugar das humanidades na formação de nossos profissionais. Não seriam as disciplinas de humanidades aquelas capazes de formar nossos alunos em um sentido mais amplo e, sendo assim, não deveriam ocupar um lugar importante em todos os cursos de formação superior? Qual é, por exemplo, a noção de vida à qual nossos estudantes de ciências médicas são submetidos. Essa discussão não é necessária para a formação de tais estudantes? Uma discussão com as humanidades é, assim, ao meu ver, necessária para o cultivo do espírito (desenvolvimento intelectual) do qual está ligada toda prática médica.
Esse sentido humanista de compreender o termo cultura, ou seja, enquanto paideia (paidéia), manter-se-á até o século XVIII, quando, a partir da compreensão neutra do romantismo, cultura será entendida fundamentalmente como o resultado ou expressão do ethos da comunidade.

B) Cultura enquanto produto das atividades humanas: o caráter expressivo.

O segundo significado da palavra cultura (que indica os modos de vida criados adquiridos e transmitidos de uma geração para outra, entre os membros de uma determinada sociedade) é hoje especialmente usado por sociólogos e antropólogos. Esse significado de cultura, enquanto expressão do ethos, acabou se sobrepondo ao conceito humanista.
Nesse significado, que é predominante em nossos dias, cultura não é a formação do indivíduo em sua humanidade, nem sua maturidade espiritual, mas é a formação coletiva e anônima de um grupo social nas instituições que o definem. Cultura é assim, na significação atual, um termo com que se pode designar tanto a civilização mais desenvolvida quanto as formas de vida social mais rústicas e “primitivas”. Nesse significado neutro, esse termo é empregado por filósofos, sociólogos e antropólogos contemporâneos. Esse modo de conceber a cultura tem a vantagem de não privilegiar um modo de vida em relação a outro.
A antropologia buscou, assim, uma visão neutra de cultura, passando a considerar a civilização européia excessivamente etnocêntrica. Recusando a noção de paidéia, a antropologia trocou o estudo do homem pela análise de culturas.
Qual a principal conseqüência dessa transformação da idéia de cultura? É que, ao passo em que a velha noção humanista salientava na cultura a sua índole perfectiva, a “neutralização” antropológica prefere enxergar nas culturas sobretudo o elemento expressivo. Na cultura humanista, os indivíduos tornam-se cultos, na concepção antropológica, as coletividades manifestam o que já são.
No plano individual, o paralelo pode ser traçado assim: no conceito social de cultura, não é a pessoa que se educa é antes uma busca pela autenticidade da pessoa que está em jogo. Através de ajudas, como a psicanálise e terapias afins, a pessoa busca por ela mesma; ao passo que, na noção humanista, a pessoa busca por meio da educação aprimorar sua personalidade.
Esse é o grande tema que vale a pena voltar: será que a passagem de uma ótica perfectiva a uma ótica expressiva não minou o conceito de cultura como esteio de uma ética e uma filosofia da educação? Até que ponto a concepção egóica e autêntica não ameaça o próprio conceito de humanidade?
Não é pelo menos curioso que o mais eloqüente dos modernos profetas do individualismo ¾ Nietzsche ¾ tenha ao mesmo tempo preconizado a verdade dos instintos e o valor da autodisciplina?
Apesar de representar o eclipse do humanismo, Nietzsche ainda concebe a cultura enquanto formação (paidéia). Seu Zarathustra indaga, na maior preocupação: “Quem, dentre os perigos da nossa época, dedicará seus serviços de guardião e cavaleiro à humanidade; quem erguerá a imagem do homem?”
A pergunta de Nietzsche apenas dramatiza um velho cuidado do humanismo europeu.

Segunda crítica: a arte como propedêutica do conhecimento.

Desde suas primeiras aparições na Grécia Arcaica, a Grécia de Homero e de Hesíodo, a poesia em seu caráter religioso, sobretudo em Hesíodo (cf. Teogonia), manteve uma relação estreita com a educação: não foi por outro motivo que Werner Jaeger, em sua monumental obra, Paidéia, a formação do homem grego, denominou os poemas hesiódicos de poemas didáticos. Mais tarde, quando os gregos inventarem o teatro, toda educação será o resultado de uma propedêutica artística. Ao que tudo parece indicar, a obra de arte não foi vista pelos gregos como um fim em si mesmo, mas como um meio para a educação (formação) do homem. Esse povo colocou no palco de seu teatro toda a sua história: precisamente ali na orquestra foram encenados em suas tragédias e comédias os problemas da política, a guerra contra os persas, a escravização das mulheres troianas, o parricídio, o incesto, bem como temas mais corriqueiros e até mesmo profanos, como em Eurípides. O teatro grego foi o grande motivo da educação grega.
A educação que se segue, parece ter se apoiado numa célebre página de Aristóteles: é a imaginação, diz o estagirita, que conduz o homem, de sua imediaticidade sensorial às abstrações conceituais. O gregos e os medievais sabiam que o princípio da educação consiste precisamente numa imaginação bem desenvolvida. Daí o lugar privilegiado que as artes ocupavam entre esses povos, tendo ainda, inegavelmente, um profundo sentimento de religiosidade. Esse privilégio das artes garantia às crianças um respeito não somente ao tempo de aprendizagem, mas, sobretudo, à iniciação às construções culturais. O caminho para a ciência é a obra de arte ¾ que desenvolve a imaginação do educando e o prepara para as mais difíceis abstrações da teoria. Nesse sentido, a criança medieval tomava seus primeiros ensinamentos dentro de um campo de conhecimento que a conduziria mais tranqüilamente às ciências. O desenho geométrico, com suas formas mais imediatas porém abstratas, preparava sua capacidade racional, desenvolvendo o poder de se distanciar dos problemas factuais, conduzindo-a aos poucos até o rigor do pensamento depositado na aritmética. Do mesmo modo, o teatro preparava seu espírito com as histórias contadas e nascidas de seu povo, para uma posterior compreensão da história.
A eloquência ganhava lugar de destaque na educação medieval, nas chamadas disputatio, nas quais os jovens se preparavam para a arte de bem argumentar. Somados à retórica, o teatro e ainda a música e a poesia, preparavam o educando para os ensinamentos da filosofia. Enfim, a arte foi vista na história da educação como a mais poderosa introdução às ciências e ao rigor das disciplinas filosóficas, principalmente porque: a) respeitava o tempo de aprendizado da criança que, dizendo mais ou menos à maneira de Heráclito, possuem no espírito a capacidade de criar e destruir formas sempre novas; b) porque permite um desenvolvimento da capacidade imaginativa, que conduz a criança, bem lentamente, ao campo das ciências, sem traumas e sem apressar o passo.
Em 1750, o pensador alemão Alexander Baumgarten cunhou um novo substantivo a partir do verbo grego aisthesis (ais)
O caráter pedagógico de uma peça como Édipo Rei ou Antígone, de Sófocles, no teatro antigo, ou em A dama do mar, de Ibsen, no teatro mais recente, consiste na capacidade de tomar decisões, fim último de toda educação, quando se coroa no indivíduo a sua própria liberdade. A educação atual perdeu a capacidade de tomar a arte como propedêutica do conhecimento, e quando dela se apodera, é apenas como instrumento lúdico ou de entretenimento.
O teatro parece ser um dos mais poderosos instrumentos para a educação e para cultura, para o cultivo das faculdades espirituais do homem। É assim que aprendemos com Édipo, que as decisões mais importantes devem ser tomadas a despeito de toda dor, como sua decisão de punir o assassino do antigo rei, que descobre em si mesmo; aprendemos com Antígone a amar nossas tradições e a desafiar toda espécie de tirania, mesmo sob o risco da própria morte. E aprendemos com Élida, a dama do mar, que a capacidade de decidir todos os dias pelo ser amado é o melhor dos remédios para a angústia da monotonia do casamento.


Alexandre H. Reis, Belo Horizonte, primavera de 2008

quinta-feira, 28 de agosto de 2008



Antígona e Ismênia
óleo sobre tela, 60 X 60
ano: 2004
É claro que eu não deixaria de pintar Antígona....
o retrato das duas filhas de Édipo é inspirado em um vaso grego, muito conhecido, e que foi usado como capa da edição feita pela L&PM editores.


"Amor, invencível Amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu, que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!Tu arrastas, muita vez, o justo à prática da injustiça, e o virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias... Tudo cede à sedução do olhar de uma mulher formosa, de uma noiva ansiosamente desejada; tu, Amor, te equiparas, no poder, às leis supremas do universo, porque Vênus zomba de nós!" Sófocles, Antígona

O ensino da filosofia entre Platão e Nietzsche



(pintado por Alexandre H. Reis, janeiro de 1999)

"Quem é professor nato considera cada coisa apenas em relação aos seus alunos, inclusive a si mesmo." Assim começa a quarta parte, intitulada "Máximas e Interlúdios", do livro Além do Bem e do Mal, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Para nós, professores e futuros professores de filosofia, pode parecer paradoxal citar no início de um artigo precisamente a obra de um filósofo que não poupou, com suas ironias e risadas que ora beiram o sarcasmo de Schopenhauer, o nosso ofício. Mas nós, professores do novo milênio, o que na sua essência nada quer dizer, poderíamos apresentar como desculpa para esse enasio o fato de que, apesar de tudo, Nietzsche foi professor e doutor em filosofia, e conta com um lugar de destaque na galeria dos filósofos do Ocidente. E diríamos ainda que ele assegurou, graças às suas obras, e forneceu, com os seus livros, motivos e até novos temas para os professores de filosofia e de áreas afins.
No Departamento de Filosofia (FAFICH-UFMG) que, como em todos os departamentos, segue, de maneira geral, a formação de seu corpo docente, a figura de Nietzsche parece ser no mínimo ignorada, e se erigida aos nobres saberes da linha do departamento, não resistirá ante os olhares de espíritos maliciosos que dirão: "Por certo que estás, meu senhor, procurando a porta de saída". Lá está, na lista das obras exigidas para a realização do Curso de Filosofia, os amantes, as paixões, inimigos e discípulos de Nietzsche, que, abandonado à sua sorte, lamentará em seu esconderijo: "É por nossas virtudes que somos bem punidos." [1]
A escola encontra no ensinar o pensamento rigoroso a sua mais alta tarefa, o julgamento prudente, o raciocínio coerente.[2] E uma das tarefas do professor, segundo Nietzsche, é sempre conservar nas escolas a leitura dos clássicos; e é mister lembrar a fadiga que pode acarretar tal procedimento que é, num certo sentido, monstruoso, pois em suas potências hormonais, os jovens estão preparados para tal ensinamento? Apesar disso, nas palavras de Nietzsche, e isso pode parecer dogmático para os educadores de hoje, "...se os alunos apenas ouvirem, seu intelecto será involuntariamente preparado para um modo de ver científico. Não é possível que alguém saia dessa disciplina totalmente intocado pela abstração...".[3]
Todos nós apreciamos um texto bem escrito, e precisamente a forma com que um escrito de filosofia é confeccionado pode atrair os espíritos mais sensíveis. Muitos filósofos se preocuparam com a escrita, outros já escreviam a golpes de machado, como o velho Kant. Assim, gostaríamos de mencionar estes dois filósofos na história do pensamento ocidental, que possuíam um cuidado instintivo com a forma. Escritores ricamente dotados, os filósofos Platão e Nietzsche trazem à alma de seus leitores o requintado sabor da escrita. Estes filósofos-escritores despertam apetites sensuais, travam suas lutas contra demônios intempestivos num campo de batalha que lhes é próprio. A escrita lhes é uma necessidade confortável e, ao mesmo tempo, uma projeção turbulenta, na qual lutam, com êxito variado, com disposição variada.
Dos jardins de Akademos, dos discursos aos discípulos, ressoa uma imagem que é projetada no escritor. O Platão dos diálogos exotéricos[4] é inseparável do Platão que ensina, e sua peculiaridade estilística é a mais bem dotada e original galeria da diversidade da literatura grega. De acordo com Nietzsche, devemos perceber que a intenção de Platão ao escrever não era a de fazer uma obra de arte; "a obra de arte só aparece episodicamente, quase que acessoriamente". Aliás, sob a influência de Sócrates, a potência artística do filósofo de Atenas é aos poucos e gradativamente reprimida: o jovem Platão teria queimado os seus poemas trágicos para seguir e tornar-se um discípulo daquele dialético de ruas, Sócrates. Nietzsche, por sua vez, ao escrever Assim falou Zaratustra, trouxe para o primeiro plano a realização de uma obra filosófica através do cuidado excepcional com a palavra, e precisamente a palavra poética, e não o conceito ou a linguagem conceitual, expressa seu ensinamento para todos e para ninguém.
O texto nietzschiano é, antes, uma dose de absinto: com o sabor amargo de suas idéias a marteladas, propondo uma transvaloração de todos os valores erigidos em nossa cultura, a escrita nietzschiana seduz, embriaga o leitor pela apreciação literária, pela retórica que faz prender os olhos, apolíneos por excelência, às linhas que contornam figuras e imagens cuidadosamente cedidas à nossa imaginação, que se erguem do fundo do espírito revestindo com bela roupagem as mais duras verdades sobre o homem. A verdade nem sempre habita a árvore da vida, mas isso não impede que ela seja apresentada sob um tecido literário que seduza, que baile e dance com a leveza da fada verde.
O tratamento que se deve dar aos textos de Platão e de Nietzsche é, sem dúvida, um desafio a qualquer professor que queira ministrar a seus alunos um curso que vislumbre a leitura destes dois pensadores. No caso específico do Zaratustra de Nietzsche, como ler numa sala de aula um pensamento propriamente vinculado à poesia, sem trair o propósito nietzschiano de libertar a palavra do peso do conceito? Como ensinar Nietzsche que, assim como Platão, apresenta suas idéias lançando mão muitas vezes de certos aspectos do texto escrito que, uma vez analisados, se esvaecem mediante a análise? Questões devastadoras.
O poder fertilizante e sedutor da escrita é algo que transcende ao próprio discurso. Em Platão e em Nietzsche encontramos a irrupção genial de uma visão que liberta o texto filosófico da gravitação universal. A força poética da materialização verbal dos diálogos platônicos é a composição do espírito europeu numa teia sedosa que ilumina as mais diversas visões de mundo. Nietzsche demonstrou com o seu primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música, e com suas obras de maturidade, pertencer a um estrato estilístico que lhe garante um lugar entre os maiores escritores da língua alemã. Mas isso, sobretudo com sua primeira obra, não com aquele estilo presente no Zaratustra. E além disso, assegurou novos temas e exerceu forte influência em filósofos posteriores como Bergson, Martin Heidegger, Gilles Deleuze, Albert Camus e Michel Foucault.
A carnação poética capaz de revestir idéias e atrair leitores é uma forma de expressão que dá a um determinado texto filosófico ou científico... um caráter atemporal. As obras destes pensadores não perderam a sua capacidade de fascinar o homem do século XXI, e trazem ao ânimo dos leitores a vivência destes autores, que uma vez expressada em seus textos, se confundem com a vivência de todos os homens: ali pode-se ler a alma de toda uma cultura e respirar os mais diversos ares do Ocidente.
As lições de filosofia no ensino médio vêm ocupar um lugar necessário. A sua estadia neste lugar fundamental para a constituição de uma cultura, qual seja a educação, justifica-se propriamente em sua capacidade majoritária de fornecer, em linhas gerais, as condições para a instituição do debate diante das questões com as quais os nossos jovens se defrontam em sua formação mais geral. Ocupando em nossas instituições de ensino um lugar ainda tímido, a presença da filosofia e o reconhecimento de seu verdadeiro lugar, o que implica em que sejam concedidas a ela as mesmas condições de trabalho das demais disciplinas, depende do trabalho dos profissionais que hoje pretendem dela se ocupar em seu magistério. Por este motivo, o empenho na realização de um projeto que tenha uma identidade filosófica, seja ela qual for, deve ser visto com a seriedade profissional que lhe cabe. A cultura de nosso país vive ainda, não há dúvidas, as conseqüências da repressão sofrida na era da ditadura. A filosofia, que talvez tenha morrido no interior de nossas escolas realmente por inanição, e não simplesmente pela repressão, busca fôlego para reerguer-se num momento que lhe é propício: conclama-se à formação de nossos estudantes novamente as humanidades. E pela trajetória da filosofia em vinte e seis séculos de cultura da razão, é propriamente a sua competência que se conclama.
Não existe filosofia, mas filosofias. Esta afirmação indubitavelmente nos leva a perceber a existência das mais diversas identidades em nossos profissionais. O presente artigo, que nada mais é do que um prolegômeno a uma reflexão mais ampla, providencia para a sua elaboração uma análise sobre a dificuldade de se ensinar filosofia nas escolas. Mais ainda: o problema de se ensinar apoiando esse verbo na filosofia de pensadores como Nietzsche. As questões que antes foram colocadas quando se procurou apresentar o filósofo agora voltam sob outro olhar: as conseqüências pedagógicas da filosofia de Nietzsche podem levar os jovens espíritos ao fascínio e cumprirá ao professor conduzir as paixões de seus alunos. Ademais, as críticas nietzschianas à moral devem seguir um rigor conceitual no sentido de evitar as interpretações selvagens, isto é, apressadas, e distanciar do, tão comum em nossas salas de aula, "achismo".
O choque axiológico talvez seja a conseqüência mais previsível deste modo de ensinar. O conflito religioso e moral pode conduzir o estudante a uma real modificação no seu modo de pensar, ou no mínimo o conduzirá a um estado de dúvida permanente, suscitando-lhe um crescimento crítico e uma postura mais madura. Contudo, a valorização estética poderá encaminhá-lo pelas sendas da arte, mais: da criação artística, a forma mais elevada de criação, suscitando-lhe uma sensibilidade para novas formas de ver o mundo.
É justamente sobre esse aspecto estético que repousa a maior de todas as dificuldades: em pensadores como Platão e Nietzsche compreende-se uma justa adaequatio entre o conteúdo propriamente dito e a forma de expressão. Voltemos pois à questão anterior: não ensinamos a totalidade de uma filosofia se não admitimos também como problema filosófico o estilo do autor, a sua forma de expressão, a sua capacidade estética de compreender o mundo. Como é possível, pois, trabalhar com esses dois pensadores, se suas obras nos são apresentadas por meio de uma riquíssima compreensão literária? Ao proferir o conteúdo do pensamento desses autores, é muito comum o professor, em suas atividades, não problematizar o seu tão peculiar estilo, como se esse não fizesse parte de sua filosofia. Mas, basta colocar a tão simples indagação para levantar um problema filosófico tão rico e já reconhecido pela tradição: por que o filósofo Platão escreveu suas obras em forma de diálogo? Por que, mesmo com o reconhecimento do limite da escrita e de sua inferioridade em relação ao diálogo vivo (veja-se as teses do Fedro), Platão nos legou um rico acervo em nossas bibliotecas? Ora, o problema é mais atual do que nunca. E como se posiciona o professor diante dessas questões?
É ainda a capacidade de ficar perplexo diante de uma questão de fundo que deve precipitar o jovem nesse estado, o qual chamamos pathos filosófico por excelência. É ainda a capacidade de se pensar a si mesmo que deve desesperar o nosso jovem em sua vida conflituosa. Lembremos o dinamarquês S. Kierkegaard, para quem a capacidade de pensar a sua própria angústia é que faz do homem o seu essencial dever-ser: "Não estar desesperado, eis precisamente o desespero." E lembremos ainda a nossos jovens que, depois que a vida lhes apresentar uma série de enigmas, devem, conscientemente, proceder a uma escolha neste vasto campo dos saberes, e o quanto antes se proporem a si mesmos a interrogação délfica sobre sua própria identidade. Eis, pois, a definição de Nietzsche, que sempre retorna ao "conheça-te a ti mesmo":

Um filósofo: é um homem que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos, como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, constituindo a sua espécie de acontecimentos e coriscos; que é talvez ele próprio um temporal, caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em torno do qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude. Um filósofo: oh, um ser que tantas vezes foge de si, que muitas vezes tem medo de si, mas é sempre curioso demais para não ‘voltar a si'... Além do Bem e do Mal, §292.
[1]NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal, §132.
[2] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, §265.
[3] Idem, §266
[4] Por exotérico entendemos o pensamento de Platão que era destinado, através de seus escritos, também àqueles que se encontravam fora da Academia (exw, daí exotérico, aquilo que se direciona para fora), ou seja, o pensamento contido em todos os seus 29 diálogos que conhecemos. Distinguimos essa noção de esotérico (que deriva de esw, que quer dizer dentro), ou seja, aquela parcela do pensamento de Platão que ficava restrita apenas aos alunos no interior da Academia. Sobre o caráter dessas doutrinas esotéricas, conhecidas como "Doutrinas não-escritas" (agrafa dogmata, agrapha dogmata) de Platão, ver, sobretudo, REALE, G. História da filosofia Antiga, volume II. Primeira seção, capítulo I. São Paulo: Loyola, 1994.

Cultura, política e suas implicações

"Sentido Velado" óleo sobre tela, 2005, Alexandre H. Reis





A cultura é a expressão do ethos de uma comunidade, é a maneira pela qual os diversos indivíduos encontram a sua socialização e passam a agir de acordo com os costumes vigentes inicialmente na família, na comunidade e na sociedade. O conflito está, nesse sentido, presente desde a primeira infância quando o agir da criança se choca com os costumes que vêm de fora, com o repetir constante dos hábitos que instituem os costumes da comunidade. O ethos se contrapõe aos desejos individuais, fazendo-lhes "violência" a fim de plasmá-los, ou seja, os costumes da sociedade são vistos como o fim a ser atingido pela natureza da criança. É assim que a Antropologia Cultural investiga as mais diversas culturas, fazendo valer a observação que em suas mais variadas formas os indivíduos se agregam sob um ethos comum. O antropólogo C. Levi-Strauss, por meio de uma complicada teoria, chega à conclusão de que uma cultura surge com a proibição do incesto: é justamente com a instauração da norma, da lei, que se pode falar de cultura. De fato, em nenhuma cultura que se tem notícia, mesmo naquelas ditas "primitivas", existe a possibilidade da aceitação do incesto.
A passagem do ethos à constituição da lei que vai gerir os costumes da comunidade é, de uma forma muito lúcida, exposta por Henrique Cláudio de Lima Vaz em seus Escritos de Filosofia II - Ética e cultura, nos quais demonstra o filósofo mineiro, que o ethos é o lugar da liberdade: "Essa é a experiência decisiva que está na origem da criação ocidental da sociedade política como espaço ético da soberania da lei."[1] Originalmente, nesse sentido, o Estado é, portanto, oriundo das leis que nascem nos costumes (ethos) da comunidade, quando o poder das leis não-escritas já é insuficiente para garantir o corpo seguro da sociedade. Tanto o hábito quanto o mito perdem a força de obrigar: quando isso acontece os membros da comunidade caem numa anomia. Ora, nenhuma sociedade pode ser anômica, ela deve, pois, buscar outros meios para se organizar quando o ethos se torna insuficiente para garantir a ordem e dar continuidade ao corpo, sempre aberto, de costumes sociais. A idéia de um governo legítimo se confunde, desse modo, com a própria ética que governa os costumes de um povo, uma vez que a ética não é outra coisa senão a ciência do ethos.
É nesse sentido que devemos entender a afirmação de Eugène Enriquez, que após introduzir a tensão que gera a discussão inicial entre a possibilidade de uma arte de governar e a de se instituir uma ciência de governo, diz que:

"...seja qual for a concepção que uma sociedade tenha de governo, ela deve estabelecer um corpus de princípios que favorecem a coordenação de suas atividades e possam responder às perguntas feitas para a instauração de todo laço social."[2]

Na Grécia Antiga, como lembra Enriquez, não existe a idéia de Estado nem uma "instituição separada do corpo dos cidadãos". O poder de decidir está nas mãos de todos os cidadãos, é isso que caracteriza a idéia de democracia direta, uma vez que não existem representantes que se coloquem entre o cidadão e a ação política, mas esse "nas mãos de todos" significa nas mãos de poucos. Essa continua sendo sempre a principal crítica ao regime inventado e praticado pelos gregos, pois as crianças, mulheres e escravos não eram tidos como cidadãos. À parte dessa crítica, a democracia já não se misturava às mágicas palavras da religião, mas se difundia na possibilidade de um governo do povo. Do povo, o que não quer dizer da razão, como criticou Sócrates.
O Ocidente caminhou no sentido de separar o poder político do poder da palavra divina. Ao contrário do Pentateuco, da época de Moisés, o Estado foi apartado da religião. Numa descrição histórica, Enriquez narra as mais diversas maneiras por meio das quais as sociedades são colocadas perante a noção de norma, de lei. É justamente a idéia de laço social como laço fatal que ganha, portanto, uma atenção particular em "A arte de governar", na medida em que esses laços sociais encontram uma permanência da qual o sujeito não pode se apartar. Nas chamadas "sociedades arcaicas", bem como em certas regiões do Oriente, não existe uma separação entre política e religião, ao passo que o Estado no Ocidente tornou-se laico: não há nada que esteja acima do soberano. Ora, quem é o soberano? É aquele que decide em momentos de crise. Na Grécia Antiga, sobretudo no século IV, o século de Sócrates e de Platão, é a razão que deve decidir nesses momentos, daí a oposição de Sócrates à democracia, que seria uma espécie de loteria, de jogo de sorte para o filósofo ateniense. Na Alemanha Nacional-Socialista, o Führer representa toda a soberania do Estado: a noção de soberania passa então por uma noção política indissociada de uma noção religiosa: não há nada acima do Estado, a não ser Deus, mas o próprio Deus fala por meio da boca do Führer. Lembremos ainda que na França do Antigo Regime aquela noção grega de um governo do povo foi inteiramente suprimida pela idéia de um duplo corpo do rei, onde novamente a política ou o Estado deve atrelar suas mãos à religião.
Nas demais formas de governo que conhecemos, tanto no caso da ditadura, em que há uma tentativa de integração entre a sociedade civil, o cidadão e o Estado, quanto no caso do regime totalitário, há uma supressão ou mesmo uma confusão da noção de alteridade. O outro, que não o soberano, é visto não como algo que possibilita a identidade do governante, mas como algo que está inteiramente a ele submetido e que deve acolher a sua voz com sendo a única voz possível. Essa não admissão do diferente é constituinte dos regimes que procuram abolir a alteridade por meio de uma noção de unidade, que se impõe com violência às partes constituintes.
A diferenciação que fazemos entre Ocidente/Oriente não é senão cultural, não podendo ser fundamentada na geografia, pois para os japoneses nós somos os orientais[3]. Esses dois caminhos pelos quais as civilizações seguiram guardam ainda uma curiosa distinção: o Ocidente caminhou para a laicização do ethos, ao passo que isso não ocorreu no Oriente. Ali não havia uma diferença entre uma lei civil e uma lei religiosa.
Mas será que essas confusões entre a política e a religião de fato não existem no Ocidente? Será que de fato hoje, em algumas sociedades ocidentais, não existe nada acima do Estado?
Quando, no dia 11 de setembro de 2001, as torres do World Trade Center vieram abaixo, o mundo todo voltou suas forças contra a eminência do terrorismo. G. W. Bush veio então à televisão para anunciar a sua guerra contra o "Grande Satã", numa campanha que deveria mostrar ao povo americano, ferido em sua identidade, e ao mundo quem está verdadeiramente ao lado de Deus. A democracia é hoje usada como campanha de guerra pelo governo estadunidense. O Iraque, país que está situado para além dos costumes ocidentais, deve, desde já, aderir ao regime ocidental. Nas mais diversas religiões encontramos um aspecto comum presente em todos os setores dessas manifestações: toda religião, seja ela qual for, é marcada pela intolerância. Nesse sentido, um determinado conjunto de crenças é a interpretação verdadeira das leis ancestrais, das Sagradas Escrituras, das falas oraculares, etc. Ora, também quando se trata de governo, nas suas relações internacionais, encontramos a intolerância para com o diferente. Nesse sentido, o que ocorre é uma cristalização do pensamento que não pode, por estar preso aos grilhões de um determinado pólo, reconhecer-se no outro. Esse aspecto caracteriza, na essência mais íntima de sua constituição, o estado da barbárie. Não querer um nem o outro, mas todos ao mesmo tempo, é isso que caracteriza o pensamento da criança que não absorveu ainda os ensinamentos de sua comunidade. E é isso que caracteriza um pensamento que não reconhece a existência de outros: nós, os portadores da voz de Deus, vamos livrar o mundo do perigo do "Grande Satã".
A democracia foi entendida pelos gregos de uma maneira fundamentalmente distinta da nossa democracia representativa. Ali, na polis, não existe uma hierarquia entre cidadãos: todos os homens adultos nascidos na cidade-estado podem atuar nas decisões mais importantes. Como bem nos mostrou Eugéne Enriquez, em "A arte de governar", não existia ali um condutor, mas diversos cidadãos que conduziam a cidade. É assim que a democracia grega foi idealizada na Renascença: a Atenas ideal ressurge após o período de incertezas da Idade Média, como o modelo perene a ser seguido. Mas a Grécia que surgiu nas renascenças já estava distante da Grécia verdadeira, os perigos e os contrapontos da democracia existem desde sua concepção há mais de vinte e cinco séculos. No regime democrático da velha Atenas, instaurado após o governo dos Trinta, não imperou apenas o bom senso e o reconhecimento do outro, isto é, da opinião diferente, mas também ocorreu ali, por meio das decisões de todos, o exílio e o ostracismo: "No entanto, uma tal sociedade na qual todos os homens possuem, nos dizeres de Protágoras, a politiké technè(...) justificou a guerra, pois esta permitia ‘tornar-se senhor daqueles que mereciam ser reduzidos à escravidão'(Aristóteles)"[4]. Também podemos tomar testemunho de Jacob Burckhardt, que segundo Otto Maria Carpeaux, modificou, de uma vez por todas, o nosso olhar para a Atenas democrática:

"Com o tempo, perceberam que Simônides emigrara para Sicília, que Ésquilo morrera lá também, e Eurípedes na Macedônia, que Heródoto vivera em Túrio, que Sócrates preferira à fuga a cicuta, que Platão fugira, até, para Utopia."[5]

No já mencionado "A arte de governar", Enriquez discute, tomando o exemplo histórico dos mais variados regimes, como dissemos acima, as dificuldades ou mesmo a impossibilidade de se compreender o verbo governar nos rigores de uma ciência. Não somente aquilo que chama a arte de governar, mas também o exercício da educação e da psicanálise representam modalidades de ofícios que atuam diretamente, isto é, não admitem mediações entre os agentes envolvidos: o governante e o cidadão, no caso do governar, o professor e a criança, no caso do professorado, e o analista e o paciente no psicanalisar.
Como tentamos compreender acima, a democracia representa, apesar de tudo, um regime que está repleto de dificuldades e é suscetível às mais variadas críticas. No texto de Enriquez, fica claro que esse é um regime que nunca se encontra pronto, mas que se constrói a cada momento de exigência histórica. O ponto de partida do autor procura demonstrar uma similaridade entre os três ofícios descritos acima, no sentido de mostrar que neles existe uma exigência interna que preside o exercício da função. O grande problema é que a exigência moral não constitui, ela mesma, uma instância capaz de regular de uma vez por todas a atividade consciente do governante, do educador e do psicanalista. Uma vez que o profissional desses ofícios, no caso dos dois últimos, encontra-se sozinho com o seu outro (alunos e cliente, respectivamente), o agente regulador de sua atividade profissional não é senão ele mesmo, pois mesmo diante do protesto de um aluno, o professor goza ainda do poder que lhe é legitimado pela instituição. O mesmo ocorre com o governante, a sua voz deve sempre representar a voz dos seus cidadãos, mas é sempre a sua voz em última instância que regula a voz do povo. "A guerra do bem contra o mal", dizia Bush aos seus cidadãos americanos, e hoje, talvez em busca da restauração de um orgulho ferido, a guerra contra os terroristas invisíveis de Osama Bin Laden, converteu-se em guerra contra Sadam, e a instauração da democracia num país do oriente, que encobre apenas os interesses mais secretos, é a demonstração de que nós somos a paz. Paradoxalmente, mesmo querendo a guerra, o governo americano é para o seu povo a expressão da liberdade e da paz.
O exercício do poder, talvez seja essa a tese de fundo de Enriquez, exige para sua realização a sutileza da arte do convencimento, a sutileza de legitimar o que antes constituía simplesmente o interesse. É assim que o professor pode conduzir o aluno à assimilação de uma hegemonia, é assim que o psicanalista pode interferir negativamente no estado psíquico de seu cliente, e é assim que um governante pode fazer sua voz tornar-se o espelho de sua nação.

(Este texto foi publicado originalmente nos Cadernos de Educação, FAE/UEMG, nº31)



[1]LIMA VAZ, E. C. Escritos de Filosofia II, São Paulo: Loyola, 1993. p.16.
[2]ENRIQUEZ, E. "A Arte de governar", in Figura Paterna e Ordem Social: tutela, autonomia e legitimidade nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Autêntica, 2001.
[3]Cf. Houaiss, verbete oriente: "lat. oriens,entis 'oriental; oriente, parte do céu em que nasce o sol'".
[4]ENRIQUEZ, E. op.cit., pág. 6
[5]BURCKHARDT, J. História de la Cultura Griega, vol. I, citado por Otto Maria Carpeaux, em "Burckhardt e o futuro da inteligência", in Ensaios reunidos, vol. I, RJ: Topbooks/UniverCidade: 1999, pág. 261.

Filhos de Kant

O velho Goethe, óleo sobre tela, 2003, por Alexandre H. Reis




O primeiro contato que tive com a obra de Nietzsche devo à minha adolescência, mas sobremodo, devo acrescentar que um adolescente é velho demais para ler este pensador alemão. Não me seria permitido calar diante dos problemas que envolveram o meu primeiro olhar sobre a obra desse senhor de bigodes. De fartos bigodes. Se se quer entender um pouquinho de Nietzsche é preciso entender Kant, e se se pretende um bom entendedor de Kant é preciso entender a tradição metafísica na qual ele está inserido e contra a qual levantou sua voz. Não é fácil a tarefa. Embrenhar-se pelos campos da filosofia é desafiar o espírito à luta e fugir para longe do habitual. Educar os olhos e os ouvidos para o mundo sob uma nova perspectiva que se compreende sob diversos ângulos e que não se esgota em nenhum ponto angular. A filosofia basta-se a si mesma. Mas bastaria o filósofo a si mesmo? Era comum entre os gregos o conselho do velho oráculo: "conheça-te a ti mesmo" ¾ esse parece ser o verdadeiro princípio de todo o filosofar.
Nietzsche era filho de Kant e, nesse sentido, neto da tradição platônica. Talvez um neto bastardo, mas, seja como for, um neto atencioso e sensato. Dito isso, podemos afirmar que Nietzsche é irmão de nosso tempo, pois dificilmente se conseguirá entender a nossa irremediável época sem antes ter tido uma boa compreensão da proibição da metafísica realizada por Immanuel Kant em sua Crítica da razão pura. Se Nietzsche é filho de Kant, é irmão de Schopenhauer, pois esse foi o primeiro filho da filosofia kantiana (os hegelianos que me perdoem). Mas Nietzsche é aquele filho mais novo que admira o irmão mais velho enaltecendo-o como herói somente enquanto dura a infância, pois quando adulto o denominará de décadent par excellence. Nietzsche teve ainda um sobrinho que procurou desdenhá-lo sem, no entanto, conseguir fazê-lo. Freud é filho de Schopenhauer, mas a psicanálise é filha de Nietzsche: inseminação artificial. O relacionamento que Freud tem com o pai de Zaratustra é um tanto quanto peculiar: ele afirma nunca ter estudado Nietzsche por achar (?) que as intuições desse filósofo se assemelhavam muito às investigações da psicanálise. Evitava-o para não ser influenciado. Mas "geneticamente" não podia negar o seu passado. Nietzsche denominava-se o primeiro psicólogo, e os temas de sua filosofia têm inegavelmente um parentesco com os da psicanálise. Herança de Schopenhauer, herança de Kant.
A psicanálise perdeu, no entanto, uma traço essencial de seu verdadeiro pai durante a gestação: ela é filha de Nietzsche, mas foi concebida por Freud, filho de Schopenhauer. Devido a motivos que se eu fosse biólogo me atreveria a explicar, a psicanálise puxou os traços, não de Nietzsche, mas de Schopenhauer: ela é filha do pessimismo. Et ipse / Notus in fratres animi paterni.
[1] Nietzsche teve ainda muitos filhos, dentre os quais existem vários que seguiram por trilhas jamais imaginadas pelo pai. Mas a história parece se mover justamente porque os filhos se dispensam das tarefas deixadas pelos pais. Talvez devêssemos dizer que os netos de Kant ocuparam um lugar central nos rumos que tomou o pensamento no Ocidente. Mas os pobres filhos e netos, sem jamais sabê-lo ou admiti-lo, somente trabalhavam para desenvolver a obra deixada por Kant. Dentre os seus mais ilustres netos encontram-se Freud e Ludwig Wittgenstein, filhos de Arthur Schopenhauer; Martin Heidegger e Michel Foucault, filhos de Nietzsche. Kant teve outros filhos não mencionados aqui, mas o leitor num rápido e pequeno esforço logo saberá reconhecer, e assim fazendo, também reconhecerá outros netos do solteirão de Königsber, que, preferindo a filosofia ao convite de casamento recebido, nos deixou uma vasta prole.
Mas a astúcia é a morada do Diabo e a filosofia segue sempre por trilhas semelhantes. Mesmo o parricídio, tão raro nas sociedades modernas, é comum na prática filosófica. Quando me aventurava a ler Nietzsche, na caduquice da adolescência, desconhecia a sua origem e me enganava constantemente com sua retórica do inconcebível: Nietzsche, no fundo, também é filho de Sócrates.


[1] "Eu próprio sou conhecido pela minha afeição paternal para com os meus irmãos." Horácio, citado por Montaigne em seu ensaio "Da amizade".

terça-feira, 15 de abril de 2008

CRÍTICA DO LIVRO VITA


Recebi um belíssimo presente no início deste ano, pena que somente agora pude realmente interromper minha jornada de trabalho, respirar, e apreciar o presente. Trata-se de uma crítica do livro Vita - breves pensamentos sobre a vida e a morte, que lancei no final do ano passado, escrita pelo Lúcio Emílio em seu riquíssimo blog Penetrália. O artigo é, em verdade, um convite ao debate, com elogios dos quais não sou merecedor, e críticas que são bem-vindas por provocar o diálogo que move e faz renascer o espírito filosófico.

Não me surpreende que minha primeira crítica tenha comparado meu livro com o estilo de Nietzsche e que tenha respirado ali um ar pró-vindo do século XIX. Talvez este seja o século do qual mais me influencio, com o qual mais dialogo. A provocação da clonagem do estilo é bem humorada, bem informada, e alimenta uma boa discussão. Agradeço imensamente ao Lúcio por isso. Eu diria, no entanto, que Nietzsche não é a única influência na parte estrutural de meu livro. Incluiria aí um Schopenhauer, um La Rochefoucauld, um Pascal, um La Bruyère, talvez Heráclito e até mesmo o impressionante Aníbal Machado. Mas, digamos, meus escritores prediletos não escreveram apenas aforismos, nos legando um estilo que muitas vezes se apresenta ou experimenta outras tantas formas de expressão.

O estilo aforismático não foi escolhido devido à leitura desses grandes mestres da pena, mas sim pelo objeto do qual se escolheu tratar. Sempre me pareceu um contra-senso falar sobre a morte. Mas, digamos, esse problema não me deixou em paz um minuto sequer em minha formação filosófica. Não cabe aqui, nem mesmo cabe em mim, fazer uma auto-biografia, mas, digamos, esse é um problema que sempre habitou minha casa. Talvez eu tenha escolhido a filosofia, na insensatez da adolescência, apenas para lidar com o problema da morte. Talvez esta seja uma verdade para a qual ainda não abri os olhos. E talvez a morte tenha me conduzido ao contra-senso de não me calar diante dela, que insistiu em bater à porta de minha casa por três vezes. Não é o lugar nem a idade para uma autobiografia. Quero apenas com isso dizer que o tema não foi "escolhido" propriamente, mas talvez imposto pelas terríveis e admiráveis Euríneas, e o aforismo me pareceu ser o estilo mais apropriado pela recusa da linguagem conceitual ou sistemática, uma vez que entendo que a complexidade do tema não cabe nas roupagens de um conceito.

Meu caríssimo Lúcio Emílio pode aqui me dizer, e com razão, que essa tese é propriamente nietzscheana, uma vez que a preocupação com o modo de expressão esteve presente em toda a obra do filho do pastor alemão. Nietzsche teria escolhido o aforismo, por exemplo, em Humano, demasiado humano, numa tentativa de romper com a tradição filosófica mais sistemática e conceitual. Isso se recusarmos a tese de Eugen Fink que nos diz que ele só escreveu aforismos por que não tinha saúde para elaborar um texto de fôlego, devido às constantes crises de cefaléia causadas por sua doença (sífilis). Mas não me parece, contudo, que a originalidade seja algo possível ou mesmo desejável. O nietzscheano Heidegger nos legou um aforismo que carrego comigo, como se este aforismo revelasse para mim uma verdade na qual teimo em acreditar: Danken ist denken! Pensar é agradecer! E com isso entendo que qualquer consciência filosófica não surge do nada, não surge sem um diálogo com os grandes mestres e com os amigos, que sempre proporcionam a arte de pensar. E aqui faço um agradecimento público ao meu grande amigo Ramon Maia e ao brilhante (o blog Penetrália justifica o adjetivo) Lúcio Emílio. O primeiro encorajou-me ao debate, ao aceitar publicar meu livrinho; o segundo deu-a honra do debate.

Gostaria de fazer uma defesa do meu infortunado aforismo 144. Para tanto, cito o texto do Lúcio que já traz o pobre fragmento:







“O outro ponto problemático foram alguns elogios a Hitler no aforisma número 144:

'Comércio exterior. A Alemanha teve o seu Führer na desastrosa figura de Hitler, que era astuto, relativamente inteligente, mas não auto-suficiente: os Estados Unidos souberam tirar proveito deste fato, aumentando seu poder econômico sob as máscaras de sua propaganda anti-hitlerista e emprestando suas admiráveis maquininhas para a contabilidade e reconhecimento dos judeus (REIS, 2007, p. 79).'

Penso que Hitler foi notável unicamente em seu uso da razão instrumental, pois conseguiu controlar os impulsos de sua natureza para a destruição durante relativamente muito tempo, o tempo de sua carreira política: pior para a Alemanha. No fim das contas, fez com a Europa o que fez com sua prima Geli Raubal, quem sabe seu único amor heterossexual: levou-a ao suicídio. A Europa Unida deve a ele sua fraqueza, sua dependência em relação aos Estados Unidos.”





Aqui podemos ver a riqueza do estilo aforismático: ele pode ser lido de diversas perspectivas, não apenas de uma. Por isso tal estilo foi escolhido para se falar da vida e da morte. “O sentido se constrói pelo leitor”, dizia-me meu grande amigo e editor, Ramon Maia. E este sentido, o que vê no aforismo 144 elogios a Hitler, foi criado pela crítica do Lúcio. Vejamos se consigo contrapor a esse olhar um outro possível. Comércio exterior. Assim se intitula o aforismo, dizendo em seguida que Hitler foi “astuto”, a qualidade da raposa elogiada pelo divino Maquiavel, “relativamente inteligente”, o que não me parece propriamente elogioso e, finalmente, “não auto-suficiente”, o que leva as afirmações seguintes no aforismo. Mas, de quais afirmações se trata? O aforismo apenas aponta, parecendo ocultar alguma informação.

Sabemos hoje que, sobretudo com as afirmações de Edwin Black, que o Holocausto só foi possível, inteiramente, pela tecnologia criada por uma empresa americana, a IBM, que criou um sistema de cartões perfurados (que nós chamamos de “Hollerith” aqui no Brasil), usados pelo nazismo no reconhecimento e contabilidade dos judeus. O cartão continha o nome, o número da pessoa e um carimbo. É possível ver um destes cartões em um museu do Holocausto, em Washington. Os cartões possuíam de vinte a oitenta colunas em dez ou mais linhas, que possibilitavam uma grande diversidade de configurações. Para quê serviam estes cartões? Para o senso racial, classificando cada alemão quanto ao nome, raça, endereço, religião, cor, local do trabalho, avós, bisavós, etc. Enfim, o sistema desenvolvido pela IBM e vendido aos alemães possibilitou o reconhecimento de 6 milhões de judeus, aproximadamente. Sabemos hoje que a IBM tinha exclusividade a da produção e comercialização tanto do cartão quando da máquina que fazia operar o cartão. Sem esta máquina, o número de judeus reconhecidos não passaria de 500 mil.
Assim, o aforismo, de forma a deixar para o leitor a possibilidade do sentido, provoca o olhar sob diversos ângulos. “Mas, por que não se informou no livro Vita, o que foi dito acima?” Por aqui, meus caros, o texto assumiria um estilo jornalístico ou denunciativo, o que não é nem um pouco defendido por mim, em se tratando de um livro de aforismos. Espero que com isso eu tenha esclarecido o ângulo com o qual olho o meu próprio aforismo, convencido de que não admiro Hitler, nem mesmo pela arquitetura (no sentido literal) criada pelo odor cadavérico de sua vontade de dominação. O Holocausto é um dos momentos mais incompreensíveis de nossa história, uma loucura coletiva para a qual até mesmo a inteligência de Heidegger se manteve cego, no período em que foi reitor da universidade de Berlim.

No mais, acredito no velho ditado, que diz que “o advogado que faz sua própria defesa tem por cliente um idiota”. E cá estou eu, me defendendo uma interpretação possível. Mas, digamos, não é pela defesa que estou a escrever estas linhas, e sim para agradecer, embora tardiamente, a crítica ou homenagem que o Lúcio Emílio fez ao meu livro, cumprindo com um dos mais importantes mandamentos da vida colorida pela literatura ou pela filosofia. A crítica, dizia meu velho professor e mestre José Henrique Santos, não é apanágio de inimigos, mas é, antes de tudo, um dos deveres da amizade.

O blog Penetrália: http://penetralia-penetralia.blogspot.com/

A crítica do Lúcio:
http://penetralia-penetralia.blogspot.com/2007/12/clone-se-si-mesmo-ou-breves-consideraes.html
Sobre Edwin Black e as relações entre a IBM, O governo americano e o Holocausto, ver http://www.edwinblack.com/

quarta-feira, 26 de março de 2008

A arte da Solidão

Orquídia, óleo sobre tela, 2001, por Alexandre H. Reis

Ao convidar meus alunos de “Filosofia e Ética” a ouvir algumas lições de Sócrates, confrontei-me com uma sabedoria que se mostra demasiado simples: o que temos a aprender verdadeiramente com nós mesmos? O que tenho entendido, nestes primeiros dias de setembro, é que o retorno a si mesmo, o voltar o olhar para cada um de nós, é tarefa penosa que revela um bocado daquilo que sempre permanece esquecido em nosso dia-a-dia. Não compreendemos verdadeiramente quem somos se não experimentamos a solidão. E o que é mais difícil de afirmar é a necessidade de que devemos estar a sós em meio a uma multidão que cega nossos olhos para uma interioridade que, temo, está desaparecendo em meio a um mundo cada vez mais acelerado e mais convidativo para o entretenimento. Creio, assim, que o entretenimento é o grande flagelo de nossos tempos modernos. Com nossa inteligência dispersa em uma série de problemas sociais e de prazeres coletivos, acabamos de olhos bem fechados para nós mesmos.
Sócrates, o velho tagarela que sempre interrogava seus compatriotas sobre a verdade de seus conhecimentos, parece ter deixado algumas lições imprescindíveis para a verdadeira sabedoria: coloca-te sob suspeita! Mas, o que este duvidar de si mesmo pode nos dar? Quem está, hoje, dois mil e quatrocentos anos após a sua morte, disposto a abrir mão de todo prazer imediato, de todos os convites que o mundo moderno tem a nos ofertar, para se voltar para si mesmo e buscar, a partir de si, um conhecimento que seja ao mesmo tempo simples e revelador?
O nosso mundo parece ter transformado a arte em entretenimento: a arte já não é a revelação do espírito, e sim o seu mais fugaz passa-tempo. A música, que educada o espírito para o sentimento sublime, é hoje um barulho que agita o corpo, e torna a alma ainda mais estranha a si mesma. Nossa educação tem se tornado um treinamento que promete uma profissão, nada mais. Neste sentido, penso estarmos muito ocupados para compreender realmente o que Sócrates propunha: o conhecimento de si mesmo é a suprema tarefa capaz de libertar o homem de suas amarras sociais, capaz de libertá-lo da prisão das convenções sociais, esta falsa noção de verdade que tem se tornado a grande mentira das sociedades de massa. Rir de si mesmo, assim compreendo toda grande sabedoria. Mas o riso, insisto, este não se levar a sério, nos dá, primeiramente, a grande angústia que pode nos despertar para o pensamento. O riso nos dá, para além deste primeiro momento angustiante de se descobrir um ser vazio, toda possibilidade de alegria. É preciso, assim, inicialmente convidar-se a si mesmo para o debate, para a revisão dos próprios valores que guiam nossas ações, e, num segundo momento, quando se descobre a fragilidade de nosso próprio ser, enfrentar o mundo e suas mentiras para, no final, descobrir a verdadeira arte de se estar no mundo, a sublime e divina arte de sorrir!
Sócrates, se levado a sério, deixará cada um de nós confuso e em estado de perplexidade, e é aí que se dá o início de uma aventura que poucos hoje em dia se dispõem a buscar: a aventura do pensamento, a arte de pensar.

ÉLIDA, A DAMA DO MAR

Sempre acreditei que a vida seria impossível sem a arte, sem uma criação de sentido que a envolva e a distancie de sua banalidade e mediocridade dadas. A vida só é possível se for reinventada longe de tudo que é natural, imediato e cansativo.
Viver sem a arte é, assim, simplesmente viver. Felicitou-me muito que meu domingo tenha sido investido de um ar vindo do século XIX, frio, chuvoso que nos descansa do tropicalismo.
Hoje reli pela terceira vez A dama do mar, uma belíssima peça do dramaturgo Ibsen, o autor mais encenado na Europa do século XIX. Essa peça parece-me um drama em que todas as falas possuem um duplo sentido. A impressão que tenho é que existe sempre um duplo sentido: não me parece um drama realista, mas a máscara que acoberta a experimentação. Voltarei a isso. Depois de A casa de bonecas, Nora foi celebrada como a salvadora da sociedade, dando a Ibsen um lugar garantido na cabeceira das feministas. Haveria alguma ingenuidade nisso? Mas, poderíamos perguntar com o próprio Ibsen, o que aconteceria se Nora, ao invés do grande e sagrado sacrifício (ela é um personagem nietzscheano, um espírito livre, um espírito de afirmação) ficasse em seu lar? A resposta veio em Os espectros, em que encontramos a loucura como resultado da submissão ao marido e ao casamento já falido. Ibsen acreditava no compromisso que o indivíduo tinha com a verdade e com a sociedade. Eis a tarefa de auto-realização. Eis, inclusive, a mais importante proposição filosófica, a única que realmente vale a pena mencionar sempre: conheça-te a ti mesmo.

A composição de A dama do mar agrada-me pela leveza, não apenas no pensamento e na descrição das imagens e das cenas, mas na composição de cada frase. Fiquei feliz ao reler e, como das outras vezes, lembrei-me da poetiza russa, na verdade mais alemã do que russa, Lou-Andréas Salomé. Lou é talvez a grande heroína da virada para o século XX. Nietzsche escreveu a ela: "trago comigo algumas coisas que não se podem ler em meus livros e para isso procuro a terra mais bela e mais fecunda". A paixão de Nietzsche experimentará o poder misterioso da mulher: "tive de silenciar porque falar de você me teria derrubado cada vez". A relação entre os dois é uma página importante para compreender forças poderosas. Ela escreveu: "Em alguma profundeza oculta de nossa natureza, estamos inteiramente distanciados um do outro. Na sua natureza, como numa velha fortaleza, Nietzsche tem muitos calabouços escuros e porões escondidos que não são percebidos num encontro superficial, mas que podem conter o mais pessoal dele. Estranho, recentemente me ocorreu, com súbita intensidade, que alguma vez poderemos até nos defrontar como inimigos." Os dois se distanciarão definitivamente. Parece que o impacto da separação marcará um caminho (deliberado?) de solidão. Nietzsche tornar-se-á um ermitão. Ela demonstrou-se mais forte do que ele, mais livre, mais leve, mais independente. Ele vagará solitário pelo mundo: sobretudo pelas cidades italianas. Ela tornar-se-á o que ele vislumbrou em seu pensamento: um espírito livre.

O que mais me chamou a atenção em Elida foi a compreensão de que havia uma necessidade de independência para afirmar a sua escolha livre. Renunciar ao casamento, pedir o divórcio para realmente escolher livremente. Eis a grandeza de Elida. Pouco importa o que ela escolherá: o misterioso estrangeiro, que atrai e apavora, que seduz pela proximidade, pela distância, pela ameaça que propõe a quebra da banalidade, ou a singela descoberta de que a amor pode se dar pela tranqüilidade, pela descoberta da simplicidade que revela um sentimento que, longe da grandeza poética, pode ser verdadeiro na banalidade do dia-a-dia. Pouco importa tudo isso. O que importa, o que devemos aprender com a dama do mar, é que o desejo deve ser afirmado a cada dia. A independência é a única possibilidade de afirmação do desejo.

Teria Elida renunciado ao seu desejo? A afirmação de que a liberdade é imprescindível para a escolha, isso me pareceu a mais difícil de todas as afirmações. Lou-Andreas Salomé representa a possibilidade de mudança. E Elida? Não representa a mesma coisa? Ou estaria a mudança apenas na aceitação do estrangeiro? Elida descobre, ao meu ver, que a grande mudança está em quebrar seus laços com o passado, com o sublime que a ameaça no presente. Ela nunca mais será a mesma: se se esconde um retorno à civilização em sua escolha, parece-me uma afirmação interessante, mas ela não pode nos deixar cegos para o outro ponto de vista: Elida descobriu a simplicidade do amor, não como a aceitação do grandioso, do sublime, mas como a novidade possível da afirmação de seu destino. Ela aceitou a sua vida, e isso é a grande mudança que a tornará uma grande mulher. Acredito, assim, que conseguimos ver coisas diferentes e importantes em nossas leituras. A negação do desejo? A afirmação do desejo? Numa palavra eu diria, a independência de espírito. É tudo.

Alexandre H. Reis

Vita - breves pensamentos sobre a vida e a morte


por Ramon Maia


Não seria impertinente dizer que o livro apresentado aqui por Alexandre Reis nos remete a um certa noção de sujeito. De alguma forma, pelo seu caráter aforismático logo nos lembraria os moralistas franceses como La Rochefoucauld. Contudo, a
subjetividade que o texto de Alexandre propõe não está propriamente na trama do livro, não é algo pressuposto, senão que deverá ser construída pelo próprio leitor. Pensemos na resenha crítica que Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de
Moraes Neto fazem de Memórias Sentimentais de João Miramar ao afirmarem sobre o referido romance oswaldiano que a construção do enredo se faz no espírito do leitor.
A gravitação estilística do livro de Alexandre Reis é moderna, para não dizer modernista. Lança mão deuma fina ironia e um certo humor, sem os quais os breves pensamentos sobre a vida e a morte perderiam sua eficácia. A oscilação entre uma delgada angústia e linhagens de um estilo sardônico ganha força com o espírito de fragmentação. Alexandre abre mão do sistema para tecer lineamentos sobre parcelas da vida e, na verdade, as questões propostas são repostas ao leitor que deverá juntar as peças de um quebracabeças infinito.

Casa velha

Casa velha
esta é a casa que meus pais moraram no início dos anos 60

Cabela de Homem

Cabela de Homem
esta é prima da minha obra. Eu a concebi numa noite em que a lua estava tão amarela que parecia o Sol... ela é filha da noite... sem lâmpadas.

Josemar

Josemar
Este é o josemar, escultura em argila. A miniatura em sua testa fiz somente para a fotografia, com macinha de modelar

Figueira

Figueira
pintado por mim em 05/01/2007

O cinturião de Rembrandt

O cinturião de Rembrandt
eis o guardião de minha morada

detalhe

detalhe

Cacilda

Cacilda
produzi esta escultura em 2000