segunda-feira, 10 de novembro de 2008

CULTURA E EDUCAÇÃO À LUZ DA FILOSOFIA DA ARTE

Apesar de extenso, o ensaio que aqui escrevo expressa as minhas preocupações com a educação em nossos dias. Destina-se a todo aquele que de alguma forma se preocupa com a educação e o futuro de nosso país. Qual é a concepção de educação que temos? O que é educar? Responder a esta pergunta é tomar posição frente à atual crise de nossa época, uma crise espiritual, ética e cultural.


Apresentação do problema

Gostaria de começar com um velho ensinamento da filosofia alemã, atribuído a Heidegger, que expressa toda a sua sabedoria na simplicidade do reconhecimento: “Denken ist Danken” (pensar é agradecer). Pensar é dialogar com os mestres do pensamento, com os criadores da arte, da história, das letras, do conhecimento e da ciência. O reconhecimento se dá, assim, na atribuição do valor da tradição, no diálogo com as criações humanas. A simplicidade deste gesto guarda, em sua forma essencial, um grande saber: ninguém cria a partir do nada, toda criação encerra a sua originalidade em um combate (agón) ou conflito com o passado, vale dizer: em um diálogo com a tradição. Em sentido mais amplo, ninguém pode sequer estar totalmente sozinho na cultura, pois a sua própria consciência é o resultado de um aprendizado. Lembro aqui, em agradecimento, portanto, as palavras do grande romântico alemão Achim von Arnin, que, contra toda blasfêmia da criação puramente individual, contra a loucura de se iniciar a partir da consciência egóica, dizia em seu romance A condessa Dolores: “Maldito seja aquele que começa por si mesmo! Somente a infâmia começa por si mesma um novo mundo. O que é bom o foi eternamente”.
Se o propósito desse ensaio é buscar uma compreensão, ainda que em suas linhas gerais, da relação entre cultura e educação, é preciso antes aprender a ouvir a voz que, mesmo vinda de tempos antigos, faz-se presente em nosso modo de pensar, de agir e compreender nossa própria realidade. Pois, no final das contas, é somente graças à tradição, que nos empresta suas construções, que podemos criticá-la. A tarefa de vislumbrar a proximidade entre cultura e educação nos conduz, certamente, a uma crítica do atual estado em que se contra nossa pedagogia ¾ frente a efetividade do fazer pedagógico. Algumas noções da filosofia da arte podem aqui corroborar para tal crítica e até mesmo possibilitar algumas explicações da atual crise da educação.
Iniciemos, à maneira de Sócrates, com a indagação: que é cultura? Quando e como surgiu, de modo consciente, a noção de cultura? O que essa noção expressava inicialmente? Qual a sua relação com a educação desde os antigos até os modernos; por que essa relação parece ter se desfeito em nossos dias? De quem é a culpa?
Otto Maria Carpeaux gostava de citar seu amigo arquiteto, Adolf Loos, que dizia: “As velhas verdades dizem-nos mais que as novas mentiras”, e em relação às construções arquitetônicas, Loos dizia: “Tudo o que é moderno é feio, tudo o que é velho é belo”. Com isso, queria dizer o arquiteto vienense, explica Carpeaux, que o tempo é o senhor da verdade: destrói as construções mal feitas, falhas e deixa persistir as coisas bem realizadas: “O feio é esquecido pelo tempo; mas a mentira é esquecida por si mesma” (Carpeaux, Ensaios Reunidos, pág. 200). Lembremos ainda Machado de Assis que, quando certa vez alguém lhe disse “Que casas feias!”, respondeu categoricamente: “Feias! Mas são velhas!”.
É nesse sentido que endereço minha primeira crítica à pedagogia: a ela é necessário sentido histórico; ao pedagogo é preciso um profundo diálogo com a história da educação: não a escola ideal deve ser pensada, mas a escola histórica deve ser conhecida. A segunda crítica, que apresentarei logo a seguir, e que se coloca em relação à primeira, é, até onde consigo ver, o principal problema da pedagogia em nossos tempos: o distanciamento abissal entre educação e arte, tomando essa última palavra aqui em sua significação mais ampla, ou seja, em seu sentido paidêutico.

Primeira crítica: o problema do conhecimento histórico.

A) Cultura enquanto Paidéia: o caráter perfectivo.


Quando nós, homens do século XXI, olhamos para nossa história humana, não podemos deixar de nos surpreender com a estreita relação entre educação e cultura, mais ainda: com o significado dessa relação para nossos mestres do passado: a rigor, educação e cultura são uma e mesma coisa.
A idéia de cultura, o termo é metafórico, designa 1º) o cultivo das capacidades humanas e 2º) o resultado do exercício destas capacidades segundo certas normas. Esse segundo significado é, obviamente, anterior a toda idéia de uma filosofia da cultura pensada a partir de uma sociedade. A noção de cultura aparece como resultado da tradução feita pelo filósofo romano Cícero ( 106-43 a.C ), no século I a.C, da palavra grega paidéia (paideia), sinônimo de educação no sentido de algo que ultrapassa, em densidade moral, a mera instrução. Cultura denota, assim, nos círculos humanísticos onde surgiu, um processo educativo e perfectivo, cujo sujeito era, obviamente, um indivíduo. Em seu livro As Idéias e as Formas, José Guilherme Merquior dedica-se a examinar este aspecto da noção de cultura. É, pois, nesse sentido, observa Merquior, que ainda hoje falamos que uma pessoa é culta e, por implicação, que tal ou qual cidade é um centro de cultura.
A implicação ou significação maior do conceito de cultura instala-se, desse modo, no seu caráter perfectivo, remetendo à noção grega de paidéia, de formação, no qual o sujeito pode tornar-se maduro, pode tornar-se melhor. Esse caráter perfectivo do conceito de cultura remete à própria etimologia: cultura conota, como os substantivos, culto e agricultura, uma atitude de zelo e cuidado perante algo que cresce e se forma, amadurecendo lentamente. É nesse sentido que podemos compreender a concepção de pedagogo entre os gregos: ele deve conduzir a criança até seu amadurecimento enquanto homem, regando sua individualidade com as construções culturais, artísticas e filosóficas ou científicas realizadas pelo povo. Nesse primeiro sentido, educação significa a formação do indivíduo do mesmo modo que o agricultor zela por suas sementes para que se formem enquanto plantas.
Outra característica da idéia clássica de cultura é o seu alcance universal, sua vocação cosmopolita. Não foi à toa que Cícero estabeleceu uma equivalência entre cultura e humanitas, a própria condição humana como meta a ser conquistada pelo esforço pessoal ¾ ou seja, a própria condição humana como valor e não como simples dado biológico.
Cultura significa, portanto, em sua mais antiga acepção, a formação do homem, sua melhoria e seu refinamento. Além desse 1º significado, que é a tradução de paidéia, de educação no sentido em que os gregos compreenderam esse termo, encontramos, como já foi indicado e como será desenvolvido a seguir, um segundo significado: cultura é o resultado dessa formação, ou seja, o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados, que também costumam ser chamados de civilização.
Educação enquanto formação do homem, enquanto paidéia: esse é o significado por meio do qual o humanismo pensou o conceito de cultura. Seu significado refere-se, primeiramente, à formação da pessoa individual: é a educação do homem enquanto tal, conforme as criações que são próprias ao homem, chamadas pelos gregos e latinos de boas artes, que eram, a poesia, a música, a eloquência, o teatro, a filosofia, etc. voltarei a discutir essa questão das boas artes mais adiante.

Em seu Dicionário de filosofia, N. Abbagnano chama a atenção para o fato de que a educação, no sentido amplo,

"É definida não do ponto de vista da sociedade, mas do indivíduo: a formação do indivíduo, sua cultura, torna-se o fim da educação. A definição de educação na tradição pedagógica do Ocidente obedece inteiramente a essa exigência. A educação é definida como formação do homem, amadurecimento do indivíduo, consecução da sua forma completa e perfeita: portanto, como passagem gradual ¾ semelhante à de uma planta, mas livre ¾ da potência ao ato dessa forma realizada." (ABBAGNANO, Dicionário de filosofia, verbete “educação)

Assim, em nossa educação atual, é preciso perguntar ainda pelo lugar das humanidades na formação de nossos profissionais. Não seriam as disciplinas de humanidades aquelas capazes de formar nossos alunos em um sentido mais amplo e, sendo assim, não deveriam ocupar um lugar importante em todos os cursos de formação superior? Qual é, por exemplo, a noção de vida à qual nossos estudantes de ciências médicas são submetidos. Essa discussão não é necessária para a formação de tais estudantes? Uma discussão com as humanidades é, assim, ao meu ver, necessária para o cultivo do espírito (desenvolvimento intelectual) do qual está ligada toda prática médica.
Esse sentido humanista de compreender o termo cultura, ou seja, enquanto paideia (paidéia), manter-se-á até o século XVIII, quando, a partir da compreensão neutra do romantismo, cultura será entendida fundamentalmente como o resultado ou expressão do ethos da comunidade.

B) Cultura enquanto produto das atividades humanas: o caráter expressivo.

O segundo significado da palavra cultura (que indica os modos de vida criados adquiridos e transmitidos de uma geração para outra, entre os membros de uma determinada sociedade) é hoje especialmente usado por sociólogos e antropólogos. Esse significado de cultura, enquanto expressão do ethos, acabou se sobrepondo ao conceito humanista.
Nesse significado, que é predominante em nossos dias, cultura não é a formação do indivíduo em sua humanidade, nem sua maturidade espiritual, mas é a formação coletiva e anônima de um grupo social nas instituições que o definem. Cultura é assim, na significação atual, um termo com que se pode designar tanto a civilização mais desenvolvida quanto as formas de vida social mais rústicas e “primitivas”. Nesse significado neutro, esse termo é empregado por filósofos, sociólogos e antropólogos contemporâneos. Esse modo de conceber a cultura tem a vantagem de não privilegiar um modo de vida em relação a outro.
A antropologia buscou, assim, uma visão neutra de cultura, passando a considerar a civilização européia excessivamente etnocêntrica. Recusando a noção de paidéia, a antropologia trocou o estudo do homem pela análise de culturas.
Qual a principal conseqüência dessa transformação da idéia de cultura? É que, ao passo em que a velha noção humanista salientava na cultura a sua índole perfectiva, a “neutralização” antropológica prefere enxergar nas culturas sobretudo o elemento expressivo. Na cultura humanista, os indivíduos tornam-se cultos, na concepção antropológica, as coletividades manifestam o que já são.
No plano individual, o paralelo pode ser traçado assim: no conceito social de cultura, não é a pessoa que se educa é antes uma busca pela autenticidade da pessoa que está em jogo. Através de ajudas, como a psicanálise e terapias afins, a pessoa busca por ela mesma; ao passo que, na noção humanista, a pessoa busca por meio da educação aprimorar sua personalidade.
Esse é o grande tema que vale a pena voltar: será que a passagem de uma ótica perfectiva a uma ótica expressiva não minou o conceito de cultura como esteio de uma ética e uma filosofia da educação? Até que ponto a concepção egóica e autêntica não ameaça o próprio conceito de humanidade?
Não é pelo menos curioso que o mais eloqüente dos modernos profetas do individualismo ¾ Nietzsche ¾ tenha ao mesmo tempo preconizado a verdade dos instintos e o valor da autodisciplina?
Apesar de representar o eclipse do humanismo, Nietzsche ainda concebe a cultura enquanto formação (paidéia). Seu Zarathustra indaga, na maior preocupação: “Quem, dentre os perigos da nossa época, dedicará seus serviços de guardião e cavaleiro à humanidade; quem erguerá a imagem do homem?”
A pergunta de Nietzsche apenas dramatiza um velho cuidado do humanismo europeu.

Segunda crítica: a arte como propedêutica do conhecimento.

Desde suas primeiras aparições na Grécia Arcaica, a Grécia de Homero e de Hesíodo, a poesia em seu caráter religioso, sobretudo em Hesíodo (cf. Teogonia), manteve uma relação estreita com a educação: não foi por outro motivo que Werner Jaeger, em sua monumental obra, Paidéia, a formação do homem grego, denominou os poemas hesiódicos de poemas didáticos. Mais tarde, quando os gregos inventarem o teatro, toda educação será o resultado de uma propedêutica artística. Ao que tudo parece indicar, a obra de arte não foi vista pelos gregos como um fim em si mesmo, mas como um meio para a educação (formação) do homem. Esse povo colocou no palco de seu teatro toda a sua história: precisamente ali na orquestra foram encenados em suas tragédias e comédias os problemas da política, a guerra contra os persas, a escravização das mulheres troianas, o parricídio, o incesto, bem como temas mais corriqueiros e até mesmo profanos, como em Eurípides. O teatro grego foi o grande motivo da educação grega.
A educação que se segue, parece ter se apoiado numa célebre página de Aristóteles: é a imaginação, diz o estagirita, que conduz o homem, de sua imediaticidade sensorial às abstrações conceituais. O gregos e os medievais sabiam que o princípio da educação consiste precisamente numa imaginação bem desenvolvida. Daí o lugar privilegiado que as artes ocupavam entre esses povos, tendo ainda, inegavelmente, um profundo sentimento de religiosidade. Esse privilégio das artes garantia às crianças um respeito não somente ao tempo de aprendizagem, mas, sobretudo, à iniciação às construções culturais. O caminho para a ciência é a obra de arte ¾ que desenvolve a imaginação do educando e o prepara para as mais difíceis abstrações da teoria. Nesse sentido, a criança medieval tomava seus primeiros ensinamentos dentro de um campo de conhecimento que a conduziria mais tranqüilamente às ciências. O desenho geométrico, com suas formas mais imediatas porém abstratas, preparava sua capacidade racional, desenvolvendo o poder de se distanciar dos problemas factuais, conduzindo-a aos poucos até o rigor do pensamento depositado na aritmética. Do mesmo modo, o teatro preparava seu espírito com as histórias contadas e nascidas de seu povo, para uma posterior compreensão da história.
A eloquência ganhava lugar de destaque na educação medieval, nas chamadas disputatio, nas quais os jovens se preparavam para a arte de bem argumentar. Somados à retórica, o teatro e ainda a música e a poesia, preparavam o educando para os ensinamentos da filosofia. Enfim, a arte foi vista na história da educação como a mais poderosa introdução às ciências e ao rigor das disciplinas filosóficas, principalmente porque: a) respeitava o tempo de aprendizado da criança que, dizendo mais ou menos à maneira de Heráclito, possuem no espírito a capacidade de criar e destruir formas sempre novas; b) porque permite um desenvolvimento da capacidade imaginativa, que conduz a criança, bem lentamente, ao campo das ciências, sem traumas e sem apressar o passo.
Em 1750, o pensador alemão Alexander Baumgarten cunhou um novo substantivo a partir do verbo grego aisthesis (ais)
O caráter pedagógico de uma peça como Édipo Rei ou Antígone, de Sófocles, no teatro antigo, ou em A dama do mar, de Ibsen, no teatro mais recente, consiste na capacidade de tomar decisões, fim último de toda educação, quando se coroa no indivíduo a sua própria liberdade. A educação atual perdeu a capacidade de tomar a arte como propedêutica do conhecimento, e quando dela se apodera, é apenas como instrumento lúdico ou de entretenimento.
O teatro parece ser um dos mais poderosos instrumentos para a educação e para cultura, para o cultivo das faculdades espirituais do homem। É assim que aprendemos com Édipo, que as decisões mais importantes devem ser tomadas a despeito de toda dor, como sua decisão de punir o assassino do antigo rei, que descobre em si mesmo; aprendemos com Antígone a amar nossas tradições e a desafiar toda espécie de tirania, mesmo sob o risco da própria morte. E aprendemos com Élida, a dama do mar, que a capacidade de decidir todos os dias pelo ser amado é o melhor dos remédios para a angústia da monotonia do casamento.


Alexandre H. Reis, Belo Horizonte, primavera de 2008

2 comentários:

Laurene disse...

Oi, Alexandre, vc conhece o Moba?
Confira lá:

www.museumofbadart.org

Dê um pulo lá e morra de rir!

gi gama disse...

Alexandre, o seu blog tem ampliado o meu conhecimento filosófico.

Gislane

Casa velha

Casa velha
esta é a casa que meus pais moraram no início dos anos 60

Cabela de Homem

Cabela de Homem
esta é prima da minha obra. Eu a concebi numa noite em que a lua estava tão amarela que parecia o Sol... ela é filha da noite... sem lâmpadas.

Josemar

Josemar
Este é o josemar, escultura em argila. A miniatura em sua testa fiz somente para a fotografia, com macinha de modelar

Figueira

Figueira
pintado por mim em 05/01/2007

O cinturião de Rembrandt

O cinturião de Rembrandt
eis o guardião de minha morada

detalhe

detalhe

Cacilda

Cacilda
produzi esta escultura em 2000