quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Cultura, política e suas implicações

"Sentido Velado" óleo sobre tela, 2005, Alexandre H. Reis





A cultura é a expressão do ethos de uma comunidade, é a maneira pela qual os diversos indivíduos encontram a sua socialização e passam a agir de acordo com os costumes vigentes inicialmente na família, na comunidade e na sociedade. O conflito está, nesse sentido, presente desde a primeira infância quando o agir da criança se choca com os costumes que vêm de fora, com o repetir constante dos hábitos que instituem os costumes da comunidade. O ethos se contrapõe aos desejos individuais, fazendo-lhes "violência" a fim de plasmá-los, ou seja, os costumes da sociedade são vistos como o fim a ser atingido pela natureza da criança. É assim que a Antropologia Cultural investiga as mais diversas culturas, fazendo valer a observação que em suas mais variadas formas os indivíduos se agregam sob um ethos comum. O antropólogo C. Levi-Strauss, por meio de uma complicada teoria, chega à conclusão de que uma cultura surge com a proibição do incesto: é justamente com a instauração da norma, da lei, que se pode falar de cultura. De fato, em nenhuma cultura que se tem notícia, mesmo naquelas ditas "primitivas", existe a possibilidade da aceitação do incesto.
A passagem do ethos à constituição da lei que vai gerir os costumes da comunidade é, de uma forma muito lúcida, exposta por Henrique Cláudio de Lima Vaz em seus Escritos de Filosofia II - Ética e cultura, nos quais demonstra o filósofo mineiro, que o ethos é o lugar da liberdade: "Essa é a experiência decisiva que está na origem da criação ocidental da sociedade política como espaço ético da soberania da lei."[1] Originalmente, nesse sentido, o Estado é, portanto, oriundo das leis que nascem nos costumes (ethos) da comunidade, quando o poder das leis não-escritas já é insuficiente para garantir o corpo seguro da sociedade. Tanto o hábito quanto o mito perdem a força de obrigar: quando isso acontece os membros da comunidade caem numa anomia. Ora, nenhuma sociedade pode ser anômica, ela deve, pois, buscar outros meios para se organizar quando o ethos se torna insuficiente para garantir a ordem e dar continuidade ao corpo, sempre aberto, de costumes sociais. A idéia de um governo legítimo se confunde, desse modo, com a própria ética que governa os costumes de um povo, uma vez que a ética não é outra coisa senão a ciência do ethos.
É nesse sentido que devemos entender a afirmação de Eugène Enriquez, que após introduzir a tensão que gera a discussão inicial entre a possibilidade de uma arte de governar e a de se instituir uma ciência de governo, diz que:

"...seja qual for a concepção que uma sociedade tenha de governo, ela deve estabelecer um corpus de princípios que favorecem a coordenação de suas atividades e possam responder às perguntas feitas para a instauração de todo laço social."[2]

Na Grécia Antiga, como lembra Enriquez, não existe a idéia de Estado nem uma "instituição separada do corpo dos cidadãos". O poder de decidir está nas mãos de todos os cidadãos, é isso que caracteriza a idéia de democracia direta, uma vez que não existem representantes que se coloquem entre o cidadão e a ação política, mas esse "nas mãos de todos" significa nas mãos de poucos. Essa continua sendo sempre a principal crítica ao regime inventado e praticado pelos gregos, pois as crianças, mulheres e escravos não eram tidos como cidadãos. À parte dessa crítica, a democracia já não se misturava às mágicas palavras da religião, mas se difundia na possibilidade de um governo do povo. Do povo, o que não quer dizer da razão, como criticou Sócrates.
O Ocidente caminhou no sentido de separar o poder político do poder da palavra divina. Ao contrário do Pentateuco, da época de Moisés, o Estado foi apartado da religião. Numa descrição histórica, Enriquez narra as mais diversas maneiras por meio das quais as sociedades são colocadas perante a noção de norma, de lei. É justamente a idéia de laço social como laço fatal que ganha, portanto, uma atenção particular em "A arte de governar", na medida em que esses laços sociais encontram uma permanência da qual o sujeito não pode se apartar. Nas chamadas "sociedades arcaicas", bem como em certas regiões do Oriente, não existe uma separação entre política e religião, ao passo que o Estado no Ocidente tornou-se laico: não há nada que esteja acima do soberano. Ora, quem é o soberano? É aquele que decide em momentos de crise. Na Grécia Antiga, sobretudo no século IV, o século de Sócrates e de Platão, é a razão que deve decidir nesses momentos, daí a oposição de Sócrates à democracia, que seria uma espécie de loteria, de jogo de sorte para o filósofo ateniense. Na Alemanha Nacional-Socialista, o Führer representa toda a soberania do Estado: a noção de soberania passa então por uma noção política indissociada de uma noção religiosa: não há nada acima do Estado, a não ser Deus, mas o próprio Deus fala por meio da boca do Führer. Lembremos ainda que na França do Antigo Regime aquela noção grega de um governo do povo foi inteiramente suprimida pela idéia de um duplo corpo do rei, onde novamente a política ou o Estado deve atrelar suas mãos à religião.
Nas demais formas de governo que conhecemos, tanto no caso da ditadura, em que há uma tentativa de integração entre a sociedade civil, o cidadão e o Estado, quanto no caso do regime totalitário, há uma supressão ou mesmo uma confusão da noção de alteridade. O outro, que não o soberano, é visto não como algo que possibilita a identidade do governante, mas como algo que está inteiramente a ele submetido e que deve acolher a sua voz com sendo a única voz possível. Essa não admissão do diferente é constituinte dos regimes que procuram abolir a alteridade por meio de uma noção de unidade, que se impõe com violência às partes constituintes.
A diferenciação que fazemos entre Ocidente/Oriente não é senão cultural, não podendo ser fundamentada na geografia, pois para os japoneses nós somos os orientais[3]. Esses dois caminhos pelos quais as civilizações seguiram guardam ainda uma curiosa distinção: o Ocidente caminhou para a laicização do ethos, ao passo que isso não ocorreu no Oriente. Ali não havia uma diferença entre uma lei civil e uma lei religiosa.
Mas será que essas confusões entre a política e a religião de fato não existem no Ocidente? Será que de fato hoje, em algumas sociedades ocidentais, não existe nada acima do Estado?
Quando, no dia 11 de setembro de 2001, as torres do World Trade Center vieram abaixo, o mundo todo voltou suas forças contra a eminência do terrorismo. G. W. Bush veio então à televisão para anunciar a sua guerra contra o "Grande Satã", numa campanha que deveria mostrar ao povo americano, ferido em sua identidade, e ao mundo quem está verdadeiramente ao lado de Deus. A democracia é hoje usada como campanha de guerra pelo governo estadunidense. O Iraque, país que está situado para além dos costumes ocidentais, deve, desde já, aderir ao regime ocidental. Nas mais diversas religiões encontramos um aspecto comum presente em todos os setores dessas manifestações: toda religião, seja ela qual for, é marcada pela intolerância. Nesse sentido, um determinado conjunto de crenças é a interpretação verdadeira das leis ancestrais, das Sagradas Escrituras, das falas oraculares, etc. Ora, também quando se trata de governo, nas suas relações internacionais, encontramos a intolerância para com o diferente. Nesse sentido, o que ocorre é uma cristalização do pensamento que não pode, por estar preso aos grilhões de um determinado pólo, reconhecer-se no outro. Esse aspecto caracteriza, na essência mais íntima de sua constituição, o estado da barbárie. Não querer um nem o outro, mas todos ao mesmo tempo, é isso que caracteriza o pensamento da criança que não absorveu ainda os ensinamentos de sua comunidade. E é isso que caracteriza um pensamento que não reconhece a existência de outros: nós, os portadores da voz de Deus, vamos livrar o mundo do perigo do "Grande Satã".
A democracia foi entendida pelos gregos de uma maneira fundamentalmente distinta da nossa democracia representativa. Ali, na polis, não existe uma hierarquia entre cidadãos: todos os homens adultos nascidos na cidade-estado podem atuar nas decisões mais importantes. Como bem nos mostrou Eugéne Enriquez, em "A arte de governar", não existia ali um condutor, mas diversos cidadãos que conduziam a cidade. É assim que a democracia grega foi idealizada na Renascença: a Atenas ideal ressurge após o período de incertezas da Idade Média, como o modelo perene a ser seguido. Mas a Grécia que surgiu nas renascenças já estava distante da Grécia verdadeira, os perigos e os contrapontos da democracia existem desde sua concepção há mais de vinte e cinco séculos. No regime democrático da velha Atenas, instaurado após o governo dos Trinta, não imperou apenas o bom senso e o reconhecimento do outro, isto é, da opinião diferente, mas também ocorreu ali, por meio das decisões de todos, o exílio e o ostracismo: "No entanto, uma tal sociedade na qual todos os homens possuem, nos dizeres de Protágoras, a politiké technè(...) justificou a guerra, pois esta permitia ‘tornar-se senhor daqueles que mereciam ser reduzidos à escravidão'(Aristóteles)"[4]. Também podemos tomar testemunho de Jacob Burckhardt, que segundo Otto Maria Carpeaux, modificou, de uma vez por todas, o nosso olhar para a Atenas democrática:

"Com o tempo, perceberam que Simônides emigrara para Sicília, que Ésquilo morrera lá também, e Eurípedes na Macedônia, que Heródoto vivera em Túrio, que Sócrates preferira à fuga a cicuta, que Platão fugira, até, para Utopia."[5]

No já mencionado "A arte de governar", Enriquez discute, tomando o exemplo histórico dos mais variados regimes, como dissemos acima, as dificuldades ou mesmo a impossibilidade de se compreender o verbo governar nos rigores de uma ciência. Não somente aquilo que chama a arte de governar, mas também o exercício da educação e da psicanálise representam modalidades de ofícios que atuam diretamente, isto é, não admitem mediações entre os agentes envolvidos: o governante e o cidadão, no caso do governar, o professor e a criança, no caso do professorado, e o analista e o paciente no psicanalisar.
Como tentamos compreender acima, a democracia representa, apesar de tudo, um regime que está repleto de dificuldades e é suscetível às mais variadas críticas. No texto de Enriquez, fica claro que esse é um regime que nunca se encontra pronto, mas que se constrói a cada momento de exigência histórica. O ponto de partida do autor procura demonstrar uma similaridade entre os três ofícios descritos acima, no sentido de mostrar que neles existe uma exigência interna que preside o exercício da função. O grande problema é que a exigência moral não constitui, ela mesma, uma instância capaz de regular de uma vez por todas a atividade consciente do governante, do educador e do psicanalista. Uma vez que o profissional desses ofícios, no caso dos dois últimos, encontra-se sozinho com o seu outro (alunos e cliente, respectivamente), o agente regulador de sua atividade profissional não é senão ele mesmo, pois mesmo diante do protesto de um aluno, o professor goza ainda do poder que lhe é legitimado pela instituição. O mesmo ocorre com o governante, a sua voz deve sempre representar a voz dos seus cidadãos, mas é sempre a sua voz em última instância que regula a voz do povo. "A guerra do bem contra o mal", dizia Bush aos seus cidadãos americanos, e hoje, talvez em busca da restauração de um orgulho ferido, a guerra contra os terroristas invisíveis de Osama Bin Laden, converteu-se em guerra contra Sadam, e a instauração da democracia num país do oriente, que encobre apenas os interesses mais secretos, é a demonstração de que nós somos a paz. Paradoxalmente, mesmo querendo a guerra, o governo americano é para o seu povo a expressão da liberdade e da paz.
O exercício do poder, talvez seja essa a tese de fundo de Enriquez, exige para sua realização a sutileza da arte do convencimento, a sutileza de legitimar o que antes constituía simplesmente o interesse. É assim que o professor pode conduzir o aluno à assimilação de uma hegemonia, é assim que o psicanalista pode interferir negativamente no estado psíquico de seu cliente, e é assim que um governante pode fazer sua voz tornar-se o espelho de sua nação.

(Este texto foi publicado originalmente nos Cadernos de Educação, FAE/UEMG, nº31)



[1]LIMA VAZ, E. C. Escritos de Filosofia II, São Paulo: Loyola, 1993. p.16.
[2]ENRIQUEZ, E. "A Arte de governar", in Figura Paterna e Ordem Social: tutela, autonomia e legitimidade nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Autêntica, 2001.
[3]Cf. Houaiss, verbete oriente: "lat. oriens,entis 'oriental; oriente, parte do céu em que nasce o sol'".
[4]ENRIQUEZ, E. op.cit., pág. 6
[5]BURCKHARDT, J. História de la Cultura Griega, vol. I, citado por Otto Maria Carpeaux, em "Burckhardt e o futuro da inteligência", in Ensaios reunidos, vol. I, RJ: Topbooks/UniverCidade: 1999, pág. 261.

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