quarta-feira, 26 de março de 2008

ÉLIDA, A DAMA DO MAR

Sempre acreditei que a vida seria impossível sem a arte, sem uma criação de sentido que a envolva e a distancie de sua banalidade e mediocridade dadas. A vida só é possível se for reinventada longe de tudo que é natural, imediato e cansativo.
Viver sem a arte é, assim, simplesmente viver. Felicitou-me muito que meu domingo tenha sido investido de um ar vindo do século XIX, frio, chuvoso que nos descansa do tropicalismo.
Hoje reli pela terceira vez A dama do mar, uma belíssima peça do dramaturgo Ibsen, o autor mais encenado na Europa do século XIX. Essa peça parece-me um drama em que todas as falas possuem um duplo sentido. A impressão que tenho é que existe sempre um duplo sentido: não me parece um drama realista, mas a máscara que acoberta a experimentação. Voltarei a isso. Depois de A casa de bonecas, Nora foi celebrada como a salvadora da sociedade, dando a Ibsen um lugar garantido na cabeceira das feministas. Haveria alguma ingenuidade nisso? Mas, poderíamos perguntar com o próprio Ibsen, o que aconteceria se Nora, ao invés do grande e sagrado sacrifício (ela é um personagem nietzscheano, um espírito livre, um espírito de afirmação) ficasse em seu lar? A resposta veio em Os espectros, em que encontramos a loucura como resultado da submissão ao marido e ao casamento já falido. Ibsen acreditava no compromisso que o indivíduo tinha com a verdade e com a sociedade. Eis a tarefa de auto-realização. Eis, inclusive, a mais importante proposição filosófica, a única que realmente vale a pena mencionar sempre: conheça-te a ti mesmo.

A composição de A dama do mar agrada-me pela leveza, não apenas no pensamento e na descrição das imagens e das cenas, mas na composição de cada frase. Fiquei feliz ao reler e, como das outras vezes, lembrei-me da poetiza russa, na verdade mais alemã do que russa, Lou-Andréas Salomé. Lou é talvez a grande heroína da virada para o século XX. Nietzsche escreveu a ela: "trago comigo algumas coisas que não se podem ler em meus livros e para isso procuro a terra mais bela e mais fecunda". A paixão de Nietzsche experimentará o poder misterioso da mulher: "tive de silenciar porque falar de você me teria derrubado cada vez". A relação entre os dois é uma página importante para compreender forças poderosas. Ela escreveu: "Em alguma profundeza oculta de nossa natureza, estamos inteiramente distanciados um do outro. Na sua natureza, como numa velha fortaleza, Nietzsche tem muitos calabouços escuros e porões escondidos que não são percebidos num encontro superficial, mas que podem conter o mais pessoal dele. Estranho, recentemente me ocorreu, com súbita intensidade, que alguma vez poderemos até nos defrontar como inimigos." Os dois se distanciarão definitivamente. Parece que o impacto da separação marcará um caminho (deliberado?) de solidão. Nietzsche tornar-se-á um ermitão. Ela demonstrou-se mais forte do que ele, mais livre, mais leve, mais independente. Ele vagará solitário pelo mundo: sobretudo pelas cidades italianas. Ela tornar-se-á o que ele vislumbrou em seu pensamento: um espírito livre.

O que mais me chamou a atenção em Elida foi a compreensão de que havia uma necessidade de independência para afirmar a sua escolha livre. Renunciar ao casamento, pedir o divórcio para realmente escolher livremente. Eis a grandeza de Elida. Pouco importa o que ela escolherá: o misterioso estrangeiro, que atrai e apavora, que seduz pela proximidade, pela distância, pela ameaça que propõe a quebra da banalidade, ou a singela descoberta de que a amor pode se dar pela tranqüilidade, pela descoberta da simplicidade que revela um sentimento que, longe da grandeza poética, pode ser verdadeiro na banalidade do dia-a-dia. Pouco importa tudo isso. O que importa, o que devemos aprender com a dama do mar, é que o desejo deve ser afirmado a cada dia. A independência é a única possibilidade de afirmação do desejo.

Teria Elida renunciado ao seu desejo? A afirmação de que a liberdade é imprescindível para a escolha, isso me pareceu a mais difícil de todas as afirmações. Lou-Andreas Salomé representa a possibilidade de mudança. E Elida? Não representa a mesma coisa? Ou estaria a mudança apenas na aceitação do estrangeiro? Elida descobre, ao meu ver, que a grande mudança está em quebrar seus laços com o passado, com o sublime que a ameaça no presente. Ela nunca mais será a mesma: se se esconde um retorno à civilização em sua escolha, parece-me uma afirmação interessante, mas ela não pode nos deixar cegos para o outro ponto de vista: Elida descobriu a simplicidade do amor, não como a aceitação do grandioso, do sublime, mas como a novidade possível da afirmação de seu destino. Ela aceitou a sua vida, e isso é a grande mudança que a tornará uma grande mulher. Acredito, assim, que conseguimos ver coisas diferentes e importantes em nossas leituras. A negação do desejo? A afirmação do desejo? Numa palavra eu diria, a independência de espírito. É tudo.

Alexandre H. Reis

2 comentários:

Iris... disse...

apesar de curitiba ter 'o maior festival de teatro da américa latina' =P, não assisti a nenhuma peça do ibsen... =(

você conhece filmes baseados na obra dele?

(a propósito, a dama do mar eh minha favorita)

Alexandre H. Reis - Filosofia e Visão de Mundo disse...

Tem um filme espanhol, eu baixei na internet, talvez da década de 70, é uma filmagem da peça Inimigo do Povo. Eu sei que existe uma filmagem de A dama do mar, na década de cinquenta, mas não consigui muitas informações sobre esta filmagem... Enfim!
Curitiba é uma cidade linda, Iris, adoro o clima (em todos os sentidos) daí...

Casa velha

Casa velha
esta é a casa que meus pais moraram no início dos anos 60

Cabela de Homem

Cabela de Homem
esta é prima da minha obra. Eu a concebi numa noite em que a lua estava tão amarela que parecia o Sol... ela é filha da noite... sem lâmpadas.

Josemar

Josemar
Este é o josemar, escultura em argila. A miniatura em sua testa fiz somente para a fotografia, com macinha de modelar

Figueira

Figueira
pintado por mim em 05/01/2007

O cinturião de Rembrandt

O cinturião de Rembrandt
eis o guardião de minha morada

detalhe

detalhe

Cacilda

Cacilda
produzi esta escultura em 2000