quinta-feira, 28 de agosto de 2008



Antígona e Ismênia
óleo sobre tela, 60 X 60
ano: 2004
É claro que eu não deixaria de pintar Antígona....
o retrato das duas filhas de Édipo é inspirado em um vaso grego, muito conhecido, e que foi usado como capa da edição feita pela L&PM editores.


"Amor, invencível Amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu, que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!Tu arrastas, muita vez, o justo à prática da injustiça, e o virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias... Tudo cede à sedução do olhar de uma mulher formosa, de uma noiva ansiosamente desejada; tu, Amor, te equiparas, no poder, às leis supremas do universo, porque Vênus zomba de nós!" Sófocles, Antígona

O ensino da filosofia entre Platão e Nietzsche



(pintado por Alexandre H. Reis, janeiro de 1999)

"Quem é professor nato considera cada coisa apenas em relação aos seus alunos, inclusive a si mesmo." Assim começa a quarta parte, intitulada "Máximas e Interlúdios", do livro Além do Bem e do Mal, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Para nós, professores e futuros professores de filosofia, pode parecer paradoxal citar no início de um artigo precisamente a obra de um filósofo que não poupou, com suas ironias e risadas que ora beiram o sarcasmo de Schopenhauer, o nosso ofício. Mas nós, professores do novo milênio, o que na sua essência nada quer dizer, poderíamos apresentar como desculpa para esse enasio o fato de que, apesar de tudo, Nietzsche foi professor e doutor em filosofia, e conta com um lugar de destaque na galeria dos filósofos do Ocidente. E diríamos ainda que ele assegurou, graças às suas obras, e forneceu, com os seus livros, motivos e até novos temas para os professores de filosofia e de áreas afins.
No Departamento de Filosofia (FAFICH-UFMG) que, como em todos os departamentos, segue, de maneira geral, a formação de seu corpo docente, a figura de Nietzsche parece ser no mínimo ignorada, e se erigida aos nobres saberes da linha do departamento, não resistirá ante os olhares de espíritos maliciosos que dirão: "Por certo que estás, meu senhor, procurando a porta de saída". Lá está, na lista das obras exigidas para a realização do Curso de Filosofia, os amantes, as paixões, inimigos e discípulos de Nietzsche, que, abandonado à sua sorte, lamentará em seu esconderijo: "É por nossas virtudes que somos bem punidos." [1]
A escola encontra no ensinar o pensamento rigoroso a sua mais alta tarefa, o julgamento prudente, o raciocínio coerente.[2] E uma das tarefas do professor, segundo Nietzsche, é sempre conservar nas escolas a leitura dos clássicos; e é mister lembrar a fadiga que pode acarretar tal procedimento que é, num certo sentido, monstruoso, pois em suas potências hormonais, os jovens estão preparados para tal ensinamento? Apesar disso, nas palavras de Nietzsche, e isso pode parecer dogmático para os educadores de hoje, "...se os alunos apenas ouvirem, seu intelecto será involuntariamente preparado para um modo de ver científico. Não é possível que alguém saia dessa disciplina totalmente intocado pela abstração...".[3]
Todos nós apreciamos um texto bem escrito, e precisamente a forma com que um escrito de filosofia é confeccionado pode atrair os espíritos mais sensíveis. Muitos filósofos se preocuparam com a escrita, outros já escreviam a golpes de machado, como o velho Kant. Assim, gostaríamos de mencionar estes dois filósofos na história do pensamento ocidental, que possuíam um cuidado instintivo com a forma. Escritores ricamente dotados, os filósofos Platão e Nietzsche trazem à alma de seus leitores o requintado sabor da escrita. Estes filósofos-escritores despertam apetites sensuais, travam suas lutas contra demônios intempestivos num campo de batalha que lhes é próprio. A escrita lhes é uma necessidade confortável e, ao mesmo tempo, uma projeção turbulenta, na qual lutam, com êxito variado, com disposição variada.
Dos jardins de Akademos, dos discursos aos discípulos, ressoa uma imagem que é projetada no escritor. O Platão dos diálogos exotéricos[4] é inseparável do Platão que ensina, e sua peculiaridade estilística é a mais bem dotada e original galeria da diversidade da literatura grega. De acordo com Nietzsche, devemos perceber que a intenção de Platão ao escrever não era a de fazer uma obra de arte; "a obra de arte só aparece episodicamente, quase que acessoriamente". Aliás, sob a influência de Sócrates, a potência artística do filósofo de Atenas é aos poucos e gradativamente reprimida: o jovem Platão teria queimado os seus poemas trágicos para seguir e tornar-se um discípulo daquele dialético de ruas, Sócrates. Nietzsche, por sua vez, ao escrever Assim falou Zaratustra, trouxe para o primeiro plano a realização de uma obra filosófica através do cuidado excepcional com a palavra, e precisamente a palavra poética, e não o conceito ou a linguagem conceitual, expressa seu ensinamento para todos e para ninguém.
O texto nietzschiano é, antes, uma dose de absinto: com o sabor amargo de suas idéias a marteladas, propondo uma transvaloração de todos os valores erigidos em nossa cultura, a escrita nietzschiana seduz, embriaga o leitor pela apreciação literária, pela retórica que faz prender os olhos, apolíneos por excelência, às linhas que contornam figuras e imagens cuidadosamente cedidas à nossa imaginação, que se erguem do fundo do espírito revestindo com bela roupagem as mais duras verdades sobre o homem. A verdade nem sempre habita a árvore da vida, mas isso não impede que ela seja apresentada sob um tecido literário que seduza, que baile e dance com a leveza da fada verde.
O tratamento que se deve dar aos textos de Platão e de Nietzsche é, sem dúvida, um desafio a qualquer professor que queira ministrar a seus alunos um curso que vislumbre a leitura destes dois pensadores. No caso específico do Zaratustra de Nietzsche, como ler numa sala de aula um pensamento propriamente vinculado à poesia, sem trair o propósito nietzschiano de libertar a palavra do peso do conceito? Como ensinar Nietzsche que, assim como Platão, apresenta suas idéias lançando mão muitas vezes de certos aspectos do texto escrito que, uma vez analisados, se esvaecem mediante a análise? Questões devastadoras.
O poder fertilizante e sedutor da escrita é algo que transcende ao próprio discurso. Em Platão e em Nietzsche encontramos a irrupção genial de uma visão que liberta o texto filosófico da gravitação universal. A força poética da materialização verbal dos diálogos platônicos é a composição do espírito europeu numa teia sedosa que ilumina as mais diversas visões de mundo. Nietzsche demonstrou com o seu primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música, e com suas obras de maturidade, pertencer a um estrato estilístico que lhe garante um lugar entre os maiores escritores da língua alemã. Mas isso, sobretudo com sua primeira obra, não com aquele estilo presente no Zaratustra. E além disso, assegurou novos temas e exerceu forte influência em filósofos posteriores como Bergson, Martin Heidegger, Gilles Deleuze, Albert Camus e Michel Foucault.
A carnação poética capaz de revestir idéias e atrair leitores é uma forma de expressão que dá a um determinado texto filosófico ou científico... um caráter atemporal. As obras destes pensadores não perderam a sua capacidade de fascinar o homem do século XXI, e trazem ao ânimo dos leitores a vivência destes autores, que uma vez expressada em seus textos, se confundem com a vivência de todos os homens: ali pode-se ler a alma de toda uma cultura e respirar os mais diversos ares do Ocidente.
As lições de filosofia no ensino médio vêm ocupar um lugar necessário. A sua estadia neste lugar fundamental para a constituição de uma cultura, qual seja a educação, justifica-se propriamente em sua capacidade majoritária de fornecer, em linhas gerais, as condições para a instituição do debate diante das questões com as quais os nossos jovens se defrontam em sua formação mais geral. Ocupando em nossas instituições de ensino um lugar ainda tímido, a presença da filosofia e o reconhecimento de seu verdadeiro lugar, o que implica em que sejam concedidas a ela as mesmas condições de trabalho das demais disciplinas, depende do trabalho dos profissionais que hoje pretendem dela se ocupar em seu magistério. Por este motivo, o empenho na realização de um projeto que tenha uma identidade filosófica, seja ela qual for, deve ser visto com a seriedade profissional que lhe cabe. A cultura de nosso país vive ainda, não há dúvidas, as conseqüências da repressão sofrida na era da ditadura. A filosofia, que talvez tenha morrido no interior de nossas escolas realmente por inanição, e não simplesmente pela repressão, busca fôlego para reerguer-se num momento que lhe é propício: conclama-se à formação de nossos estudantes novamente as humanidades. E pela trajetória da filosofia em vinte e seis séculos de cultura da razão, é propriamente a sua competência que se conclama.
Não existe filosofia, mas filosofias. Esta afirmação indubitavelmente nos leva a perceber a existência das mais diversas identidades em nossos profissionais. O presente artigo, que nada mais é do que um prolegômeno a uma reflexão mais ampla, providencia para a sua elaboração uma análise sobre a dificuldade de se ensinar filosofia nas escolas. Mais ainda: o problema de se ensinar apoiando esse verbo na filosofia de pensadores como Nietzsche. As questões que antes foram colocadas quando se procurou apresentar o filósofo agora voltam sob outro olhar: as conseqüências pedagógicas da filosofia de Nietzsche podem levar os jovens espíritos ao fascínio e cumprirá ao professor conduzir as paixões de seus alunos. Ademais, as críticas nietzschianas à moral devem seguir um rigor conceitual no sentido de evitar as interpretações selvagens, isto é, apressadas, e distanciar do, tão comum em nossas salas de aula, "achismo".
O choque axiológico talvez seja a conseqüência mais previsível deste modo de ensinar. O conflito religioso e moral pode conduzir o estudante a uma real modificação no seu modo de pensar, ou no mínimo o conduzirá a um estado de dúvida permanente, suscitando-lhe um crescimento crítico e uma postura mais madura. Contudo, a valorização estética poderá encaminhá-lo pelas sendas da arte, mais: da criação artística, a forma mais elevada de criação, suscitando-lhe uma sensibilidade para novas formas de ver o mundo.
É justamente sobre esse aspecto estético que repousa a maior de todas as dificuldades: em pensadores como Platão e Nietzsche compreende-se uma justa adaequatio entre o conteúdo propriamente dito e a forma de expressão. Voltemos pois à questão anterior: não ensinamos a totalidade de uma filosofia se não admitimos também como problema filosófico o estilo do autor, a sua forma de expressão, a sua capacidade estética de compreender o mundo. Como é possível, pois, trabalhar com esses dois pensadores, se suas obras nos são apresentadas por meio de uma riquíssima compreensão literária? Ao proferir o conteúdo do pensamento desses autores, é muito comum o professor, em suas atividades, não problematizar o seu tão peculiar estilo, como se esse não fizesse parte de sua filosofia. Mas, basta colocar a tão simples indagação para levantar um problema filosófico tão rico e já reconhecido pela tradição: por que o filósofo Platão escreveu suas obras em forma de diálogo? Por que, mesmo com o reconhecimento do limite da escrita e de sua inferioridade em relação ao diálogo vivo (veja-se as teses do Fedro), Platão nos legou um rico acervo em nossas bibliotecas? Ora, o problema é mais atual do que nunca. E como se posiciona o professor diante dessas questões?
É ainda a capacidade de ficar perplexo diante de uma questão de fundo que deve precipitar o jovem nesse estado, o qual chamamos pathos filosófico por excelência. É ainda a capacidade de se pensar a si mesmo que deve desesperar o nosso jovem em sua vida conflituosa. Lembremos o dinamarquês S. Kierkegaard, para quem a capacidade de pensar a sua própria angústia é que faz do homem o seu essencial dever-ser: "Não estar desesperado, eis precisamente o desespero." E lembremos ainda a nossos jovens que, depois que a vida lhes apresentar uma série de enigmas, devem, conscientemente, proceder a uma escolha neste vasto campo dos saberes, e o quanto antes se proporem a si mesmos a interrogação délfica sobre sua própria identidade. Eis, pois, a definição de Nietzsche, que sempre retorna ao "conheça-te a ti mesmo":

Um filósofo: é um homem que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos, como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, constituindo a sua espécie de acontecimentos e coriscos; que é talvez ele próprio um temporal, caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em torno do qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude. Um filósofo: oh, um ser que tantas vezes foge de si, que muitas vezes tem medo de si, mas é sempre curioso demais para não ‘voltar a si'... Além do Bem e do Mal, §292.
[1]NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal, §132.
[2] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, §265.
[3] Idem, §266
[4] Por exotérico entendemos o pensamento de Platão que era destinado, através de seus escritos, também àqueles que se encontravam fora da Academia (exw, daí exotérico, aquilo que se direciona para fora), ou seja, o pensamento contido em todos os seus 29 diálogos que conhecemos. Distinguimos essa noção de esotérico (que deriva de esw, que quer dizer dentro), ou seja, aquela parcela do pensamento de Platão que ficava restrita apenas aos alunos no interior da Academia. Sobre o caráter dessas doutrinas esotéricas, conhecidas como "Doutrinas não-escritas" (agrafa dogmata, agrapha dogmata) de Platão, ver, sobretudo, REALE, G. História da filosofia Antiga, volume II. Primeira seção, capítulo I. São Paulo: Loyola, 1994.

Cultura, política e suas implicações

"Sentido Velado" óleo sobre tela, 2005, Alexandre H. Reis





A cultura é a expressão do ethos de uma comunidade, é a maneira pela qual os diversos indivíduos encontram a sua socialização e passam a agir de acordo com os costumes vigentes inicialmente na família, na comunidade e na sociedade. O conflito está, nesse sentido, presente desde a primeira infância quando o agir da criança se choca com os costumes que vêm de fora, com o repetir constante dos hábitos que instituem os costumes da comunidade. O ethos se contrapõe aos desejos individuais, fazendo-lhes "violência" a fim de plasmá-los, ou seja, os costumes da sociedade são vistos como o fim a ser atingido pela natureza da criança. É assim que a Antropologia Cultural investiga as mais diversas culturas, fazendo valer a observação que em suas mais variadas formas os indivíduos se agregam sob um ethos comum. O antropólogo C. Levi-Strauss, por meio de uma complicada teoria, chega à conclusão de que uma cultura surge com a proibição do incesto: é justamente com a instauração da norma, da lei, que se pode falar de cultura. De fato, em nenhuma cultura que se tem notícia, mesmo naquelas ditas "primitivas", existe a possibilidade da aceitação do incesto.
A passagem do ethos à constituição da lei que vai gerir os costumes da comunidade é, de uma forma muito lúcida, exposta por Henrique Cláudio de Lima Vaz em seus Escritos de Filosofia II - Ética e cultura, nos quais demonstra o filósofo mineiro, que o ethos é o lugar da liberdade: "Essa é a experiência decisiva que está na origem da criação ocidental da sociedade política como espaço ético da soberania da lei."[1] Originalmente, nesse sentido, o Estado é, portanto, oriundo das leis que nascem nos costumes (ethos) da comunidade, quando o poder das leis não-escritas já é insuficiente para garantir o corpo seguro da sociedade. Tanto o hábito quanto o mito perdem a força de obrigar: quando isso acontece os membros da comunidade caem numa anomia. Ora, nenhuma sociedade pode ser anômica, ela deve, pois, buscar outros meios para se organizar quando o ethos se torna insuficiente para garantir a ordem e dar continuidade ao corpo, sempre aberto, de costumes sociais. A idéia de um governo legítimo se confunde, desse modo, com a própria ética que governa os costumes de um povo, uma vez que a ética não é outra coisa senão a ciência do ethos.
É nesse sentido que devemos entender a afirmação de Eugène Enriquez, que após introduzir a tensão que gera a discussão inicial entre a possibilidade de uma arte de governar e a de se instituir uma ciência de governo, diz que:

"...seja qual for a concepção que uma sociedade tenha de governo, ela deve estabelecer um corpus de princípios que favorecem a coordenação de suas atividades e possam responder às perguntas feitas para a instauração de todo laço social."[2]

Na Grécia Antiga, como lembra Enriquez, não existe a idéia de Estado nem uma "instituição separada do corpo dos cidadãos". O poder de decidir está nas mãos de todos os cidadãos, é isso que caracteriza a idéia de democracia direta, uma vez que não existem representantes que se coloquem entre o cidadão e a ação política, mas esse "nas mãos de todos" significa nas mãos de poucos. Essa continua sendo sempre a principal crítica ao regime inventado e praticado pelos gregos, pois as crianças, mulheres e escravos não eram tidos como cidadãos. À parte dessa crítica, a democracia já não se misturava às mágicas palavras da religião, mas se difundia na possibilidade de um governo do povo. Do povo, o que não quer dizer da razão, como criticou Sócrates.
O Ocidente caminhou no sentido de separar o poder político do poder da palavra divina. Ao contrário do Pentateuco, da época de Moisés, o Estado foi apartado da religião. Numa descrição histórica, Enriquez narra as mais diversas maneiras por meio das quais as sociedades são colocadas perante a noção de norma, de lei. É justamente a idéia de laço social como laço fatal que ganha, portanto, uma atenção particular em "A arte de governar", na medida em que esses laços sociais encontram uma permanência da qual o sujeito não pode se apartar. Nas chamadas "sociedades arcaicas", bem como em certas regiões do Oriente, não existe uma separação entre política e religião, ao passo que o Estado no Ocidente tornou-se laico: não há nada que esteja acima do soberano. Ora, quem é o soberano? É aquele que decide em momentos de crise. Na Grécia Antiga, sobretudo no século IV, o século de Sócrates e de Platão, é a razão que deve decidir nesses momentos, daí a oposição de Sócrates à democracia, que seria uma espécie de loteria, de jogo de sorte para o filósofo ateniense. Na Alemanha Nacional-Socialista, o Führer representa toda a soberania do Estado: a noção de soberania passa então por uma noção política indissociada de uma noção religiosa: não há nada acima do Estado, a não ser Deus, mas o próprio Deus fala por meio da boca do Führer. Lembremos ainda que na França do Antigo Regime aquela noção grega de um governo do povo foi inteiramente suprimida pela idéia de um duplo corpo do rei, onde novamente a política ou o Estado deve atrelar suas mãos à religião.
Nas demais formas de governo que conhecemos, tanto no caso da ditadura, em que há uma tentativa de integração entre a sociedade civil, o cidadão e o Estado, quanto no caso do regime totalitário, há uma supressão ou mesmo uma confusão da noção de alteridade. O outro, que não o soberano, é visto não como algo que possibilita a identidade do governante, mas como algo que está inteiramente a ele submetido e que deve acolher a sua voz com sendo a única voz possível. Essa não admissão do diferente é constituinte dos regimes que procuram abolir a alteridade por meio de uma noção de unidade, que se impõe com violência às partes constituintes.
A diferenciação que fazemos entre Ocidente/Oriente não é senão cultural, não podendo ser fundamentada na geografia, pois para os japoneses nós somos os orientais[3]. Esses dois caminhos pelos quais as civilizações seguiram guardam ainda uma curiosa distinção: o Ocidente caminhou para a laicização do ethos, ao passo que isso não ocorreu no Oriente. Ali não havia uma diferença entre uma lei civil e uma lei religiosa.
Mas será que essas confusões entre a política e a religião de fato não existem no Ocidente? Será que de fato hoje, em algumas sociedades ocidentais, não existe nada acima do Estado?
Quando, no dia 11 de setembro de 2001, as torres do World Trade Center vieram abaixo, o mundo todo voltou suas forças contra a eminência do terrorismo. G. W. Bush veio então à televisão para anunciar a sua guerra contra o "Grande Satã", numa campanha que deveria mostrar ao povo americano, ferido em sua identidade, e ao mundo quem está verdadeiramente ao lado de Deus. A democracia é hoje usada como campanha de guerra pelo governo estadunidense. O Iraque, país que está situado para além dos costumes ocidentais, deve, desde já, aderir ao regime ocidental. Nas mais diversas religiões encontramos um aspecto comum presente em todos os setores dessas manifestações: toda religião, seja ela qual for, é marcada pela intolerância. Nesse sentido, um determinado conjunto de crenças é a interpretação verdadeira das leis ancestrais, das Sagradas Escrituras, das falas oraculares, etc. Ora, também quando se trata de governo, nas suas relações internacionais, encontramos a intolerância para com o diferente. Nesse sentido, o que ocorre é uma cristalização do pensamento que não pode, por estar preso aos grilhões de um determinado pólo, reconhecer-se no outro. Esse aspecto caracteriza, na essência mais íntima de sua constituição, o estado da barbárie. Não querer um nem o outro, mas todos ao mesmo tempo, é isso que caracteriza o pensamento da criança que não absorveu ainda os ensinamentos de sua comunidade. E é isso que caracteriza um pensamento que não reconhece a existência de outros: nós, os portadores da voz de Deus, vamos livrar o mundo do perigo do "Grande Satã".
A democracia foi entendida pelos gregos de uma maneira fundamentalmente distinta da nossa democracia representativa. Ali, na polis, não existe uma hierarquia entre cidadãos: todos os homens adultos nascidos na cidade-estado podem atuar nas decisões mais importantes. Como bem nos mostrou Eugéne Enriquez, em "A arte de governar", não existia ali um condutor, mas diversos cidadãos que conduziam a cidade. É assim que a democracia grega foi idealizada na Renascença: a Atenas ideal ressurge após o período de incertezas da Idade Média, como o modelo perene a ser seguido. Mas a Grécia que surgiu nas renascenças já estava distante da Grécia verdadeira, os perigos e os contrapontos da democracia existem desde sua concepção há mais de vinte e cinco séculos. No regime democrático da velha Atenas, instaurado após o governo dos Trinta, não imperou apenas o bom senso e o reconhecimento do outro, isto é, da opinião diferente, mas também ocorreu ali, por meio das decisões de todos, o exílio e o ostracismo: "No entanto, uma tal sociedade na qual todos os homens possuem, nos dizeres de Protágoras, a politiké technè(...) justificou a guerra, pois esta permitia ‘tornar-se senhor daqueles que mereciam ser reduzidos à escravidão'(Aristóteles)"[4]. Também podemos tomar testemunho de Jacob Burckhardt, que segundo Otto Maria Carpeaux, modificou, de uma vez por todas, o nosso olhar para a Atenas democrática:

"Com o tempo, perceberam que Simônides emigrara para Sicília, que Ésquilo morrera lá também, e Eurípedes na Macedônia, que Heródoto vivera em Túrio, que Sócrates preferira à fuga a cicuta, que Platão fugira, até, para Utopia."[5]

No já mencionado "A arte de governar", Enriquez discute, tomando o exemplo histórico dos mais variados regimes, como dissemos acima, as dificuldades ou mesmo a impossibilidade de se compreender o verbo governar nos rigores de uma ciência. Não somente aquilo que chama a arte de governar, mas também o exercício da educação e da psicanálise representam modalidades de ofícios que atuam diretamente, isto é, não admitem mediações entre os agentes envolvidos: o governante e o cidadão, no caso do governar, o professor e a criança, no caso do professorado, e o analista e o paciente no psicanalisar.
Como tentamos compreender acima, a democracia representa, apesar de tudo, um regime que está repleto de dificuldades e é suscetível às mais variadas críticas. No texto de Enriquez, fica claro que esse é um regime que nunca se encontra pronto, mas que se constrói a cada momento de exigência histórica. O ponto de partida do autor procura demonstrar uma similaridade entre os três ofícios descritos acima, no sentido de mostrar que neles existe uma exigência interna que preside o exercício da função. O grande problema é que a exigência moral não constitui, ela mesma, uma instância capaz de regular de uma vez por todas a atividade consciente do governante, do educador e do psicanalista. Uma vez que o profissional desses ofícios, no caso dos dois últimos, encontra-se sozinho com o seu outro (alunos e cliente, respectivamente), o agente regulador de sua atividade profissional não é senão ele mesmo, pois mesmo diante do protesto de um aluno, o professor goza ainda do poder que lhe é legitimado pela instituição. O mesmo ocorre com o governante, a sua voz deve sempre representar a voz dos seus cidadãos, mas é sempre a sua voz em última instância que regula a voz do povo. "A guerra do bem contra o mal", dizia Bush aos seus cidadãos americanos, e hoje, talvez em busca da restauração de um orgulho ferido, a guerra contra os terroristas invisíveis de Osama Bin Laden, converteu-se em guerra contra Sadam, e a instauração da democracia num país do oriente, que encobre apenas os interesses mais secretos, é a demonstração de que nós somos a paz. Paradoxalmente, mesmo querendo a guerra, o governo americano é para o seu povo a expressão da liberdade e da paz.
O exercício do poder, talvez seja essa a tese de fundo de Enriquez, exige para sua realização a sutileza da arte do convencimento, a sutileza de legitimar o que antes constituía simplesmente o interesse. É assim que o professor pode conduzir o aluno à assimilação de uma hegemonia, é assim que o psicanalista pode interferir negativamente no estado psíquico de seu cliente, e é assim que um governante pode fazer sua voz tornar-se o espelho de sua nação.

(Este texto foi publicado originalmente nos Cadernos de Educação, FAE/UEMG, nº31)



[1]LIMA VAZ, E. C. Escritos de Filosofia II, São Paulo: Loyola, 1993. p.16.
[2]ENRIQUEZ, E. "A Arte de governar", in Figura Paterna e Ordem Social: tutela, autonomia e legitimidade nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Autêntica, 2001.
[3]Cf. Houaiss, verbete oriente: "lat. oriens,entis 'oriental; oriente, parte do céu em que nasce o sol'".
[4]ENRIQUEZ, E. op.cit., pág. 6
[5]BURCKHARDT, J. História de la Cultura Griega, vol. I, citado por Otto Maria Carpeaux, em "Burckhardt e o futuro da inteligência", in Ensaios reunidos, vol. I, RJ: Topbooks/UniverCidade: 1999, pág. 261.

Filhos de Kant

O velho Goethe, óleo sobre tela, 2003, por Alexandre H. Reis




O primeiro contato que tive com a obra de Nietzsche devo à minha adolescência, mas sobremodo, devo acrescentar que um adolescente é velho demais para ler este pensador alemão. Não me seria permitido calar diante dos problemas que envolveram o meu primeiro olhar sobre a obra desse senhor de bigodes. De fartos bigodes. Se se quer entender um pouquinho de Nietzsche é preciso entender Kant, e se se pretende um bom entendedor de Kant é preciso entender a tradição metafísica na qual ele está inserido e contra a qual levantou sua voz. Não é fácil a tarefa. Embrenhar-se pelos campos da filosofia é desafiar o espírito à luta e fugir para longe do habitual. Educar os olhos e os ouvidos para o mundo sob uma nova perspectiva que se compreende sob diversos ângulos e que não se esgota em nenhum ponto angular. A filosofia basta-se a si mesma. Mas bastaria o filósofo a si mesmo? Era comum entre os gregos o conselho do velho oráculo: "conheça-te a ti mesmo" ¾ esse parece ser o verdadeiro princípio de todo o filosofar.
Nietzsche era filho de Kant e, nesse sentido, neto da tradição platônica. Talvez um neto bastardo, mas, seja como for, um neto atencioso e sensato. Dito isso, podemos afirmar que Nietzsche é irmão de nosso tempo, pois dificilmente se conseguirá entender a nossa irremediável época sem antes ter tido uma boa compreensão da proibição da metafísica realizada por Immanuel Kant em sua Crítica da razão pura. Se Nietzsche é filho de Kant, é irmão de Schopenhauer, pois esse foi o primeiro filho da filosofia kantiana (os hegelianos que me perdoem). Mas Nietzsche é aquele filho mais novo que admira o irmão mais velho enaltecendo-o como herói somente enquanto dura a infância, pois quando adulto o denominará de décadent par excellence. Nietzsche teve ainda um sobrinho que procurou desdenhá-lo sem, no entanto, conseguir fazê-lo. Freud é filho de Schopenhauer, mas a psicanálise é filha de Nietzsche: inseminação artificial. O relacionamento que Freud tem com o pai de Zaratustra é um tanto quanto peculiar: ele afirma nunca ter estudado Nietzsche por achar (?) que as intuições desse filósofo se assemelhavam muito às investigações da psicanálise. Evitava-o para não ser influenciado. Mas "geneticamente" não podia negar o seu passado. Nietzsche denominava-se o primeiro psicólogo, e os temas de sua filosofia têm inegavelmente um parentesco com os da psicanálise. Herança de Schopenhauer, herança de Kant.
A psicanálise perdeu, no entanto, uma traço essencial de seu verdadeiro pai durante a gestação: ela é filha de Nietzsche, mas foi concebida por Freud, filho de Schopenhauer. Devido a motivos que se eu fosse biólogo me atreveria a explicar, a psicanálise puxou os traços, não de Nietzsche, mas de Schopenhauer: ela é filha do pessimismo. Et ipse / Notus in fratres animi paterni.
[1] Nietzsche teve ainda muitos filhos, dentre os quais existem vários que seguiram por trilhas jamais imaginadas pelo pai. Mas a história parece se mover justamente porque os filhos se dispensam das tarefas deixadas pelos pais. Talvez devêssemos dizer que os netos de Kant ocuparam um lugar central nos rumos que tomou o pensamento no Ocidente. Mas os pobres filhos e netos, sem jamais sabê-lo ou admiti-lo, somente trabalhavam para desenvolver a obra deixada por Kant. Dentre os seus mais ilustres netos encontram-se Freud e Ludwig Wittgenstein, filhos de Arthur Schopenhauer; Martin Heidegger e Michel Foucault, filhos de Nietzsche. Kant teve outros filhos não mencionados aqui, mas o leitor num rápido e pequeno esforço logo saberá reconhecer, e assim fazendo, também reconhecerá outros netos do solteirão de Königsber, que, preferindo a filosofia ao convite de casamento recebido, nos deixou uma vasta prole.
Mas a astúcia é a morada do Diabo e a filosofia segue sempre por trilhas semelhantes. Mesmo o parricídio, tão raro nas sociedades modernas, é comum na prática filosófica. Quando me aventurava a ler Nietzsche, na caduquice da adolescência, desconhecia a sua origem e me enganava constantemente com sua retórica do inconcebível: Nietzsche, no fundo, também é filho de Sócrates.


[1] "Eu próprio sou conhecido pela minha afeição paternal para com os meus irmãos." Horácio, citado por Montaigne em seu ensaio "Da amizade".

Casa velha

Casa velha
esta é a casa que meus pais moraram no início dos anos 60

Cabela de Homem

Cabela de Homem
esta é prima da minha obra. Eu a concebi numa noite em que a lua estava tão amarela que parecia o Sol... ela é filha da noite... sem lâmpadas.

Josemar

Josemar
Este é o josemar, escultura em argila. A miniatura em sua testa fiz somente para a fotografia, com macinha de modelar

Figueira

Figueira
pintado por mim em 05/01/2007

O cinturião de Rembrandt

O cinturião de Rembrandt
eis o guardião de minha morada

detalhe

detalhe

Cacilda

Cacilda
produzi esta escultura em 2000