quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O ensino da filosofia entre Platão e Nietzsche



(pintado por Alexandre H. Reis, janeiro de 1999)

"Quem é professor nato considera cada coisa apenas em relação aos seus alunos, inclusive a si mesmo." Assim começa a quarta parte, intitulada "Máximas e Interlúdios", do livro Além do Bem e do Mal, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Para nós, professores e futuros professores de filosofia, pode parecer paradoxal citar no início de um artigo precisamente a obra de um filósofo que não poupou, com suas ironias e risadas que ora beiram o sarcasmo de Schopenhauer, o nosso ofício. Mas nós, professores do novo milênio, o que na sua essência nada quer dizer, poderíamos apresentar como desculpa para esse enasio o fato de que, apesar de tudo, Nietzsche foi professor e doutor em filosofia, e conta com um lugar de destaque na galeria dos filósofos do Ocidente. E diríamos ainda que ele assegurou, graças às suas obras, e forneceu, com os seus livros, motivos e até novos temas para os professores de filosofia e de áreas afins.
No Departamento de Filosofia (FAFICH-UFMG) que, como em todos os departamentos, segue, de maneira geral, a formação de seu corpo docente, a figura de Nietzsche parece ser no mínimo ignorada, e se erigida aos nobres saberes da linha do departamento, não resistirá ante os olhares de espíritos maliciosos que dirão: "Por certo que estás, meu senhor, procurando a porta de saída". Lá está, na lista das obras exigidas para a realização do Curso de Filosofia, os amantes, as paixões, inimigos e discípulos de Nietzsche, que, abandonado à sua sorte, lamentará em seu esconderijo: "É por nossas virtudes que somos bem punidos." [1]
A escola encontra no ensinar o pensamento rigoroso a sua mais alta tarefa, o julgamento prudente, o raciocínio coerente.[2] E uma das tarefas do professor, segundo Nietzsche, é sempre conservar nas escolas a leitura dos clássicos; e é mister lembrar a fadiga que pode acarretar tal procedimento que é, num certo sentido, monstruoso, pois em suas potências hormonais, os jovens estão preparados para tal ensinamento? Apesar disso, nas palavras de Nietzsche, e isso pode parecer dogmático para os educadores de hoje, "...se os alunos apenas ouvirem, seu intelecto será involuntariamente preparado para um modo de ver científico. Não é possível que alguém saia dessa disciplina totalmente intocado pela abstração...".[3]
Todos nós apreciamos um texto bem escrito, e precisamente a forma com que um escrito de filosofia é confeccionado pode atrair os espíritos mais sensíveis. Muitos filósofos se preocuparam com a escrita, outros já escreviam a golpes de machado, como o velho Kant. Assim, gostaríamos de mencionar estes dois filósofos na história do pensamento ocidental, que possuíam um cuidado instintivo com a forma. Escritores ricamente dotados, os filósofos Platão e Nietzsche trazem à alma de seus leitores o requintado sabor da escrita. Estes filósofos-escritores despertam apetites sensuais, travam suas lutas contra demônios intempestivos num campo de batalha que lhes é próprio. A escrita lhes é uma necessidade confortável e, ao mesmo tempo, uma projeção turbulenta, na qual lutam, com êxito variado, com disposição variada.
Dos jardins de Akademos, dos discursos aos discípulos, ressoa uma imagem que é projetada no escritor. O Platão dos diálogos exotéricos[4] é inseparável do Platão que ensina, e sua peculiaridade estilística é a mais bem dotada e original galeria da diversidade da literatura grega. De acordo com Nietzsche, devemos perceber que a intenção de Platão ao escrever não era a de fazer uma obra de arte; "a obra de arte só aparece episodicamente, quase que acessoriamente". Aliás, sob a influência de Sócrates, a potência artística do filósofo de Atenas é aos poucos e gradativamente reprimida: o jovem Platão teria queimado os seus poemas trágicos para seguir e tornar-se um discípulo daquele dialético de ruas, Sócrates. Nietzsche, por sua vez, ao escrever Assim falou Zaratustra, trouxe para o primeiro plano a realização de uma obra filosófica através do cuidado excepcional com a palavra, e precisamente a palavra poética, e não o conceito ou a linguagem conceitual, expressa seu ensinamento para todos e para ninguém.
O texto nietzschiano é, antes, uma dose de absinto: com o sabor amargo de suas idéias a marteladas, propondo uma transvaloração de todos os valores erigidos em nossa cultura, a escrita nietzschiana seduz, embriaga o leitor pela apreciação literária, pela retórica que faz prender os olhos, apolíneos por excelência, às linhas que contornam figuras e imagens cuidadosamente cedidas à nossa imaginação, que se erguem do fundo do espírito revestindo com bela roupagem as mais duras verdades sobre o homem. A verdade nem sempre habita a árvore da vida, mas isso não impede que ela seja apresentada sob um tecido literário que seduza, que baile e dance com a leveza da fada verde.
O tratamento que se deve dar aos textos de Platão e de Nietzsche é, sem dúvida, um desafio a qualquer professor que queira ministrar a seus alunos um curso que vislumbre a leitura destes dois pensadores. No caso específico do Zaratustra de Nietzsche, como ler numa sala de aula um pensamento propriamente vinculado à poesia, sem trair o propósito nietzschiano de libertar a palavra do peso do conceito? Como ensinar Nietzsche que, assim como Platão, apresenta suas idéias lançando mão muitas vezes de certos aspectos do texto escrito que, uma vez analisados, se esvaecem mediante a análise? Questões devastadoras.
O poder fertilizante e sedutor da escrita é algo que transcende ao próprio discurso. Em Platão e em Nietzsche encontramos a irrupção genial de uma visão que liberta o texto filosófico da gravitação universal. A força poética da materialização verbal dos diálogos platônicos é a composição do espírito europeu numa teia sedosa que ilumina as mais diversas visões de mundo. Nietzsche demonstrou com o seu primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música, e com suas obras de maturidade, pertencer a um estrato estilístico que lhe garante um lugar entre os maiores escritores da língua alemã. Mas isso, sobretudo com sua primeira obra, não com aquele estilo presente no Zaratustra. E além disso, assegurou novos temas e exerceu forte influência em filósofos posteriores como Bergson, Martin Heidegger, Gilles Deleuze, Albert Camus e Michel Foucault.
A carnação poética capaz de revestir idéias e atrair leitores é uma forma de expressão que dá a um determinado texto filosófico ou científico... um caráter atemporal. As obras destes pensadores não perderam a sua capacidade de fascinar o homem do século XXI, e trazem ao ânimo dos leitores a vivência destes autores, que uma vez expressada em seus textos, se confundem com a vivência de todos os homens: ali pode-se ler a alma de toda uma cultura e respirar os mais diversos ares do Ocidente.
As lições de filosofia no ensino médio vêm ocupar um lugar necessário. A sua estadia neste lugar fundamental para a constituição de uma cultura, qual seja a educação, justifica-se propriamente em sua capacidade majoritária de fornecer, em linhas gerais, as condições para a instituição do debate diante das questões com as quais os nossos jovens se defrontam em sua formação mais geral. Ocupando em nossas instituições de ensino um lugar ainda tímido, a presença da filosofia e o reconhecimento de seu verdadeiro lugar, o que implica em que sejam concedidas a ela as mesmas condições de trabalho das demais disciplinas, depende do trabalho dos profissionais que hoje pretendem dela se ocupar em seu magistério. Por este motivo, o empenho na realização de um projeto que tenha uma identidade filosófica, seja ela qual for, deve ser visto com a seriedade profissional que lhe cabe. A cultura de nosso país vive ainda, não há dúvidas, as conseqüências da repressão sofrida na era da ditadura. A filosofia, que talvez tenha morrido no interior de nossas escolas realmente por inanição, e não simplesmente pela repressão, busca fôlego para reerguer-se num momento que lhe é propício: conclama-se à formação de nossos estudantes novamente as humanidades. E pela trajetória da filosofia em vinte e seis séculos de cultura da razão, é propriamente a sua competência que se conclama.
Não existe filosofia, mas filosofias. Esta afirmação indubitavelmente nos leva a perceber a existência das mais diversas identidades em nossos profissionais. O presente artigo, que nada mais é do que um prolegômeno a uma reflexão mais ampla, providencia para a sua elaboração uma análise sobre a dificuldade de se ensinar filosofia nas escolas. Mais ainda: o problema de se ensinar apoiando esse verbo na filosofia de pensadores como Nietzsche. As questões que antes foram colocadas quando se procurou apresentar o filósofo agora voltam sob outro olhar: as conseqüências pedagógicas da filosofia de Nietzsche podem levar os jovens espíritos ao fascínio e cumprirá ao professor conduzir as paixões de seus alunos. Ademais, as críticas nietzschianas à moral devem seguir um rigor conceitual no sentido de evitar as interpretações selvagens, isto é, apressadas, e distanciar do, tão comum em nossas salas de aula, "achismo".
O choque axiológico talvez seja a conseqüência mais previsível deste modo de ensinar. O conflito religioso e moral pode conduzir o estudante a uma real modificação no seu modo de pensar, ou no mínimo o conduzirá a um estado de dúvida permanente, suscitando-lhe um crescimento crítico e uma postura mais madura. Contudo, a valorização estética poderá encaminhá-lo pelas sendas da arte, mais: da criação artística, a forma mais elevada de criação, suscitando-lhe uma sensibilidade para novas formas de ver o mundo.
É justamente sobre esse aspecto estético que repousa a maior de todas as dificuldades: em pensadores como Platão e Nietzsche compreende-se uma justa adaequatio entre o conteúdo propriamente dito e a forma de expressão. Voltemos pois à questão anterior: não ensinamos a totalidade de uma filosofia se não admitimos também como problema filosófico o estilo do autor, a sua forma de expressão, a sua capacidade estética de compreender o mundo. Como é possível, pois, trabalhar com esses dois pensadores, se suas obras nos são apresentadas por meio de uma riquíssima compreensão literária? Ao proferir o conteúdo do pensamento desses autores, é muito comum o professor, em suas atividades, não problematizar o seu tão peculiar estilo, como se esse não fizesse parte de sua filosofia. Mas, basta colocar a tão simples indagação para levantar um problema filosófico tão rico e já reconhecido pela tradição: por que o filósofo Platão escreveu suas obras em forma de diálogo? Por que, mesmo com o reconhecimento do limite da escrita e de sua inferioridade em relação ao diálogo vivo (veja-se as teses do Fedro), Platão nos legou um rico acervo em nossas bibliotecas? Ora, o problema é mais atual do que nunca. E como se posiciona o professor diante dessas questões?
É ainda a capacidade de ficar perplexo diante de uma questão de fundo que deve precipitar o jovem nesse estado, o qual chamamos pathos filosófico por excelência. É ainda a capacidade de se pensar a si mesmo que deve desesperar o nosso jovem em sua vida conflituosa. Lembremos o dinamarquês S. Kierkegaard, para quem a capacidade de pensar a sua própria angústia é que faz do homem o seu essencial dever-ser: "Não estar desesperado, eis precisamente o desespero." E lembremos ainda a nossos jovens que, depois que a vida lhes apresentar uma série de enigmas, devem, conscientemente, proceder a uma escolha neste vasto campo dos saberes, e o quanto antes se proporem a si mesmos a interrogação délfica sobre sua própria identidade. Eis, pois, a definição de Nietzsche, que sempre retorna ao "conheça-te a ti mesmo":

Um filósofo: é um homem que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos, como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, constituindo a sua espécie de acontecimentos e coriscos; que é talvez ele próprio um temporal, caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em torno do qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude. Um filósofo: oh, um ser que tantas vezes foge de si, que muitas vezes tem medo de si, mas é sempre curioso demais para não ‘voltar a si'... Além do Bem e do Mal, §292.
[1]NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal, §132.
[2] NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, §265.
[3] Idem, §266
[4] Por exotérico entendemos o pensamento de Platão que era destinado, através de seus escritos, também àqueles que se encontravam fora da Academia (exw, daí exotérico, aquilo que se direciona para fora), ou seja, o pensamento contido em todos os seus 29 diálogos que conhecemos. Distinguimos essa noção de esotérico (que deriva de esw, que quer dizer dentro), ou seja, aquela parcela do pensamento de Platão que ficava restrita apenas aos alunos no interior da Academia. Sobre o caráter dessas doutrinas esotéricas, conhecidas como "Doutrinas não-escritas" (agrafa dogmata, agrapha dogmata) de Platão, ver, sobretudo, REALE, G. História da filosofia Antiga, volume II. Primeira seção, capítulo I. São Paulo: Loyola, 1994.

Um comentário:

Laurene disse...

Oi, Alexandre. Queria saber se já leu Quando Nietzsche Chorou, o romance, e qual sua opinião.

Estou lendo e gostando. O romance se permite anacronismos, quando numa carta de Elizabeth Nietzsche ela chama Paul Rée, Salomé e a mãe de "turma barra pesada".

No mais, gostei de ver sua opinião sobre a FAFICH. É preciso ser ainda mais incisivo: Nietzsche em meu tempo lá era só atacado e pouco estudado. Não tive sequer um curso dedicado a ele, mas marxistas e jesuítas o atacaram á larga...

Vamos combinar um papo no Maletta em janeiro, juntamente com o Ramon!

Abraços do Lúcio Jr.

Casa velha

Casa velha
esta é a casa que meus pais moraram no início dos anos 60

Cabela de Homem

Cabela de Homem
esta é prima da minha obra. Eu a concebi numa noite em que a lua estava tão amarela que parecia o Sol... ela é filha da noite... sem lâmpadas.

Josemar

Josemar
Este é o josemar, escultura em argila. A miniatura em sua testa fiz somente para a fotografia, com macinha de modelar

Figueira

Figueira
pintado por mim em 05/01/2007

O cinturião de Rembrandt

O cinturião de Rembrandt
eis o guardião de minha morada

detalhe

detalhe

Cacilda

Cacilda
produzi esta escultura em 2000