quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Filhos de Kant

O velho Goethe, óleo sobre tela, 2003, por Alexandre H. Reis




O primeiro contato que tive com a obra de Nietzsche devo à minha adolescência, mas sobremodo, devo acrescentar que um adolescente é velho demais para ler este pensador alemão. Não me seria permitido calar diante dos problemas que envolveram o meu primeiro olhar sobre a obra desse senhor de bigodes. De fartos bigodes. Se se quer entender um pouquinho de Nietzsche é preciso entender Kant, e se se pretende um bom entendedor de Kant é preciso entender a tradição metafísica na qual ele está inserido e contra a qual levantou sua voz. Não é fácil a tarefa. Embrenhar-se pelos campos da filosofia é desafiar o espírito à luta e fugir para longe do habitual. Educar os olhos e os ouvidos para o mundo sob uma nova perspectiva que se compreende sob diversos ângulos e que não se esgota em nenhum ponto angular. A filosofia basta-se a si mesma. Mas bastaria o filósofo a si mesmo? Era comum entre os gregos o conselho do velho oráculo: "conheça-te a ti mesmo" ¾ esse parece ser o verdadeiro princípio de todo o filosofar.
Nietzsche era filho de Kant e, nesse sentido, neto da tradição platônica. Talvez um neto bastardo, mas, seja como for, um neto atencioso e sensato. Dito isso, podemos afirmar que Nietzsche é irmão de nosso tempo, pois dificilmente se conseguirá entender a nossa irremediável época sem antes ter tido uma boa compreensão da proibição da metafísica realizada por Immanuel Kant em sua Crítica da razão pura. Se Nietzsche é filho de Kant, é irmão de Schopenhauer, pois esse foi o primeiro filho da filosofia kantiana (os hegelianos que me perdoem). Mas Nietzsche é aquele filho mais novo que admira o irmão mais velho enaltecendo-o como herói somente enquanto dura a infância, pois quando adulto o denominará de décadent par excellence. Nietzsche teve ainda um sobrinho que procurou desdenhá-lo sem, no entanto, conseguir fazê-lo. Freud é filho de Schopenhauer, mas a psicanálise é filha de Nietzsche: inseminação artificial. O relacionamento que Freud tem com o pai de Zaratustra é um tanto quanto peculiar: ele afirma nunca ter estudado Nietzsche por achar (?) que as intuições desse filósofo se assemelhavam muito às investigações da psicanálise. Evitava-o para não ser influenciado. Mas "geneticamente" não podia negar o seu passado. Nietzsche denominava-se o primeiro psicólogo, e os temas de sua filosofia têm inegavelmente um parentesco com os da psicanálise. Herança de Schopenhauer, herança de Kant.
A psicanálise perdeu, no entanto, uma traço essencial de seu verdadeiro pai durante a gestação: ela é filha de Nietzsche, mas foi concebida por Freud, filho de Schopenhauer. Devido a motivos que se eu fosse biólogo me atreveria a explicar, a psicanálise puxou os traços, não de Nietzsche, mas de Schopenhauer: ela é filha do pessimismo. Et ipse / Notus in fratres animi paterni.
[1] Nietzsche teve ainda muitos filhos, dentre os quais existem vários que seguiram por trilhas jamais imaginadas pelo pai. Mas a história parece se mover justamente porque os filhos se dispensam das tarefas deixadas pelos pais. Talvez devêssemos dizer que os netos de Kant ocuparam um lugar central nos rumos que tomou o pensamento no Ocidente. Mas os pobres filhos e netos, sem jamais sabê-lo ou admiti-lo, somente trabalhavam para desenvolver a obra deixada por Kant. Dentre os seus mais ilustres netos encontram-se Freud e Ludwig Wittgenstein, filhos de Arthur Schopenhauer; Martin Heidegger e Michel Foucault, filhos de Nietzsche. Kant teve outros filhos não mencionados aqui, mas o leitor num rápido e pequeno esforço logo saberá reconhecer, e assim fazendo, também reconhecerá outros netos do solteirão de Königsber, que, preferindo a filosofia ao convite de casamento recebido, nos deixou uma vasta prole.
Mas a astúcia é a morada do Diabo e a filosofia segue sempre por trilhas semelhantes. Mesmo o parricídio, tão raro nas sociedades modernas, é comum na prática filosófica. Quando me aventurava a ler Nietzsche, na caduquice da adolescência, desconhecia a sua origem e me enganava constantemente com sua retórica do inconcebível: Nietzsche, no fundo, também é filho de Sócrates.


[1] "Eu próprio sou conhecido pela minha afeição paternal para com os meus irmãos." Horácio, citado por Montaigne em seu ensaio "Da amizade".

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Casa velha

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Cabela de Homem

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esta é prima da minha obra. Eu a concebi numa noite em que a lua estava tão amarela que parecia o Sol... ela é filha da noite... sem lâmpadas.

Josemar

Josemar
Este é o josemar, escultura em argila. A miniatura em sua testa fiz somente para a fotografia, com macinha de modelar

Figueira

Figueira
pintado por mim em 05/01/2007

O cinturião de Rembrandt

O cinturião de Rembrandt
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detalhe

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Cacilda

Cacilda
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